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São Paulo pelos olhos de quem não vê

O repórter Lucas de Abreu Maia, cego desde a infância, conta como ele e outros deficientes visuais constroem uma relação particular com uma metrópole muitas vezes hostil a pessoas nessa condição, mas também cheia de sons, cheiros e outras sensações surpreendentes

Por Lucas de Abreu Maia (com colaboração de Alessandra Freitas)
Atualizado em 1 jun 2017, 16h49 - Publicado em 5 jun 2015, 00h00
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 (Fernando Moraes/Veja SP)
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Desvendar a alma de uma cidade se você não pode vê-la é um exercício de abstração. A partir do desenho das calçadas, do som dos carros reverberando no concreto, do tom de voz dos moradores, do sol (ou da falta dele) na pele, do cheiro — de lixo, de gente, de mato e, aqui, de forma proeminente, de fumaça — e da opinião de quem enxerga, aprendemos a criar uma relação individual e única com o lugar em que moramos. É assim que eu e cerca de 53 000 habitantes cegos (0,44% da população, fora os 292 000 com “grande dificuldade” de enxergar, segundo o Censo de 2010) lidamos com a capital todos os dias: vivenciando-a com os demais sentidos. Quando VEJA SÃO PAULO me convidou para falar sobre a metrópole vista por quem não pode descrevê-la com os olhos, aceitei sabendo que minhas histórias não seriam suficientes. Fui conversar com outros deficientes visuais, que me relataram cenas de independência e diversão, de irritação e perigo. Descobri personagens como um mecânico de automóveis que tem precisão invejável no manejo das peças e uma jovem fashionista ligadíssima na aparência, que vasculha shoppings em busca de roupas descoladas. 

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Tenho 29 anos, nasci em Vitória, no Espírito Santo, mas cresci no interior do Rio. Na infância, São Paulo significava para mim vir a consultas regulares ao oftal­mologista com o objetivo de acompanhar a evolução da minha doença. Aos 7 meses, um profissional daqui fez o diagnóstico: eu nascera com amaurose de Leber, um problema genético encontrado em um em cada 80 000 nascidos vivos. As células da retina das pessoas que possuem a doença param de se reproduzir e, com isso, o mundo ao redor vai ficando mais escuro. Aos 8 anos, as visitas à capital tornaram-se desnecessárias. Os cerca de 10% de visão que eu tinha esvaíram-se sem que eu sequer notasse.

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As memórias gráficas que me acompanham são poucas e pitorescas: meu reflexo no espelho, com o cabelo liso parecendo o de um índio com corte de cuia; uma foto da apresentadora Xuxa usando boina; a atriz Claudia Ohana na capa da fita cassete da trilha sonora da novela Vamp. Graduado em jornalismo aos 23 anos, pela PUC-RJ, eu me mudei para cá a fim de fazer um curso no jornal O Estado de S. Paulo, no qual me empreguei como repórter de política há seis anos. No fim de 2014, ingressei na revista EXAME, da Editora Abril, mas acabo de deixar o cargo para cursar doutorado na Universidade da Califórnia — já havia feito mestrado em Chicago. Escrevo este texto com a ajuda de um programa que lê, em áudio, tudo o que digitei.

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A relação entre os cegos e São Paulo é bem paradoxal. Existem locais como o Museu do Futebol, com profusão de recursos táteis (incluindo o rosto de Pelé), mas há poucas peças teatrais com audiodescrição. Pelas ruas, raramente um município muda tão súbita e completamente de um bairro para outro. Na Avenida Paulista, o passeio é largo, com piso tátil bem cuidado. A dois quarteirões, porém, começam as ladeiras dos Jardins e suas dezenas de degraus. Em muitos trechos da Zona Norte, por exemplo, o lixo e os buracos ocupam o espaço que deveria ser de quem caminha. Em toda a cidade, os quarteirões tortuosos transformam os bairros em labirintos. “Mas o pior, para mim, é a qualidade das calçadas”, contou-me Luiz Alberto de Carvalho e Silva, de 59 anos, economista. “São tão irregulares que até os cães-­guia se desorientam.”

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Encontrei Silva no início de maio em seu apartamento, na região da Vila Mariana. Ele é conhecido como o primeiro usuário de cão-guia no Brasil ao treinar seu animal, por conta própria, nos anos 70. Com memória ímpar, conhece nomes de ruas dos quatro cantos. “Imagino São Paulo como se eu voasse por ela, projetando grandes mapas na minha cabeça e percorrendo-os aos poucos.”

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Andar sozinho por aqui se tornou bem mais fácil nos últimos anos com o auxílio de aplicativos de localização com orientação em áudio, como o Blind Square. Ele informa sobre os lugares por onde o usuário passa, a exemplo de lojas, lanchonetes e estações. Há também o TapTapSee, que descreve o que você fotografa, indicando se está diante de um cachorro, um bosque… Apesar dessas ferramentas, porém, os perigos continuam. “Há alguns anos, na Zona Leste, caí em um bueiro que estava fechado com uma tábua”, relata o psicólogo Everton Oliveira, de 25 anos. “Uma perna inteira entrou no buraco, e me agarrei no asfalto para não ir até o fundo.” 

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Com Pedro Gabriel Cruz, de 10 anos, houve um susto maior. Ele perdeu a visão aos 5, em consequência de uma meningite. Aos 7, ao entrar em um vagão na Estação Santo Amaro da CPTM, ao lado da mãe, caiu no vão entre o trem e a plataforma. Foram momentos de desespero, temendo que o maquinista desse a partida. “Um passageiro me ajudou a sair de lá e, no fim, só ralei a perna e ganhei alguns roxos”, lembra. O garoto faz de tudo para levar uma vida normal: adora andar de bicicleta no Parque Villa-­Lobos e cursa o 2º ano do ensino fundamental no Colégio Vicentino Padre Chico, no Ipiranga, especializado em deficientes visuais. Do transporte público, no entanto, ficou o medo (reforçado pelo caso de um cego que morreu em abril ao cair na Estação Sé do metrô), e sua mãe tirou carta de motorista para conduzi-lo de automóvel. “Consigo reconhecer os caminhos que faço pela mudança no balanço do carro, pelas passagens nos quebra-molas”, diz. “E também através dos cheiros. Se farejo pastel frito, sei que estamos perto da feira.”

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Há um tipo de local campeão de confusão: os shoppings. Trata-se de prédios onde fica quase impossível estabelecer pontos de referência (obviamente, para nós, as vitrines serão sempre idênticas). Além disso, como são ambientes fechados, os sons reverberam e prejudicam nossa orientação. Fazer compras on-line é a opção preferencial da maioria, graças aos leitores de tela em computadores e celulares (que nos permitem usar ativamente Facebook, Twitter, WhatsApp…). Aficionada de moda, a psicóloga Maria Rita de Paiva gosta de encarar os grandes centros de varejo, mas pede ajuda a um funcionário (eu faço o mesmo quando vou ao supermercado, solicitando que me descrevam o que há em cada prateleira enquanto passo com o carrinho).

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No fim do mês passado, eu a acompanhei no Iguatemi. Chegamos para almoçar no Ritz e a medida imediata dos garçons foi nos trazer dois cardápios em braile. Nós os dispensamos e pedimos que narrassem para nós as opções. Primeiro porque nem eu nem ela dominamos bem a linguagem. Além disso, com frequência, os estabelecimentos não atua­lizam variações de preços e itens dos menus, tornando-os peças inúteis. Por vontade de Maria Rita, seguimos para a C&A. Seu cão-guia, Milo, ficava deitado aos seus pés enquanto uma vendedora lhe entregava as peças, uma a uma, para que as tocasse. Depois de apalpar e ouvir a descrição de umas três dezenas delas, experimentou oito e comprou quatro. A moda, para ela, é uma maneira de se afirmar diante de um mundo cheio de expectativas preconcebidas sobre uma mulher cega. “As pessoas se surpreendem por eu me vestir bem”, diz. 

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Pedro de Carvalho e Silva, de 54 anos, também costuma deixar as pessoas de queixo caído. Ele é mecânico em uma oficina da Aclimação. Sem ver nada desde os 3 anos, sempre foi louco por carros e começou no ramo aos 25. Reconhece rapidamente as peças ao manuseá-las e contabiliza um único acidente — em 2003, perdeu a ponta do dedo médio da mão direita ao tentar consertar o motor de uma Kombi. Rejeição, recorda, sofreu uma única vez, quando uma cliente disse que não queria que pusesse a mão no seu bem. “O chefe falou que a empresa era dele e que eu era o melhor funcionário”, orgulha-se. Pedro fez, então, o serviço e não houve reclamação.

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“O primeiro passo para entender o problema do veículo é usar a minha audição, que ficou bem aguçada ao longo da profissão. Depois, recorro ao tato”, descreve. Não há, afirma, um tipo de automóvel em que o desafio seja maior. “Ao longo do tempo, a eletrônica passou a ser mais utilizada em outros modelos, mas me adaptei bem. Obviamente, eu só não poderia lidar com pintura.”

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Ter a capacidade subestimada é algo chatíssimo. Aguentar a pena alheia é cruz mais difícil de carregar que a própria cegueira. Diferentemente do que reza o clichê, o paulistano — mais que o morador de qualquer outra cidade que eu conheça — oferece ajuda o tempo todo. Mas, achando que estamos perdidos, alguns nos puxam pelo braço e nos levam por um caminho que julgam ser o correto. Não se passa um dia sequer sem que eu ouça: “Rapaz, está indo pelo lugar errado!”. Uma dica: prontifique-se a colaborar, sim, por favor. Mas não seja inconveniente.

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O voluntarismo dos “enxergantes” (é como nós chamamos você, leitor) mostra-se idêntico com bengaleiros e usuários de cão-guia. Quem tem um cachorro em vez de olhos, porém, é obrigado a lidar ainda com a curiosidade das outras pessoas. “Muitos adoram o lado social que eles trazem, mas eu dispenso”, diz Maria Rita. “A toda hora, preciso chamar a atenção do animal por algo que fez de errado e alguém me interrompe, atrapalhando o processo.” Eu entendo a irritação dela. Certa vez me abordaram no meio de um término de namoro, ambos os lados chorando copiosamente depois da famosa DR, para virem com a bateria de perguntas, como “de que raça ele é?”.

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O orientador de coleira não é uma possibilidade para qualquer um, uma vez que há pouquíssimos treinadores de guias no Brasil. Prepará-los chega a custar mais de 100 000 reais. E o pet especial pode simplesmente não se encaixar na rotina da pessoa. Everton, por exemplo, desistiu desse auxílio por não gostar de ser restringido pelos cuidados que o bicho demandaria. A telefonista Esvana Leandro, de 39 anos, moradora de Jandira, na Grande São Paulo, tem verdadeira devoção ao bicho do marido, também não “enxergante”, mas dispensa um para si: “Vivemos numa região em que as pessoas não respeitam os cachorros”. Usuária de bengala, ela já se deu mal ao seguir confiante pelo piso tátil da Avenida Paulista: trombou com um ambulante que havia montado sua barraquinha em cima da faixa. “E fui xingada por ele.”

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A experiência de Esvana mostra que a vida de um casal de cegos é menos complicada do que pode parecer. Morei sozinho no passado e acho mais fácil do que ter no dia a dia a companhia de alguém sem a deficiência, como é meu caso hoje. Individualmente, crio um mapa mental do imóvel, separo as roupas entre as que uso em casa e as de sair, cozinho, faço faxina, e tudo funciona bem. Quando o espaço é dividido com alguém, invariavelmente as coisas são tiradas do lugar onde deixei.

Ainda na área de relacionamentos: o sexo, o amor e a beleza interagem de forma peculiar na vida de quem não enxerga. Um corpo definido, claro, é especialmente valorizado. Um abraço ou um tapinha no ombro são os truques mais comuns para entender se o alvo de interesse é mais musculoso, cheinho, magricelo. Por ego, boa parte dos deficientes visuais recorre aos amigos para avaliar a beleza do pretendente. Além disso, a autoimagem é formada com base nos comentários alheios. Para alguns, desconhecer a própria aparência é uma eterna causa de insegurança. Outros, porém, reagem com indiferença a isso — a obesidade é endêmica entre nós. 

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Temos de lidar com as falsas expectativas: é comum as pessoas acharem que somos criaturas de pura bondade, indefesos e assexuados. “Muitas mulheres nos veem como coitados”, queixa-se o psicólogo Everton Oliveira. É que, embora pensemos na falta de visão como uma condição que nos torna iguais, somos um grupo tão diverso quanto qualquer outro. Há jovens e velhos, gordos e atletas, gays e héteros, tímidos e descontraídos, dependentes e autônomos. Gostam de chamar nossas necessidades de especiais. A principal delas, no entanto, é universal: o respeito à individualidade. 

Revolução digital 

Aplicativos que mudarama vida dessas pessoas

Google Maps – Com ele é possível formular trajetos a pé e de transporte público. As orientações para o trajeto a pé são excelentes e permitem que o usuário chegue sozinho a qualquer lugar.

BlindSquare — Uma espécie de FourSquare para cegos. O aplicativo lê em voz alta tudo o que está ao redor do usuário, à medida em que ele vai andando. As descrições incluem restaurantes, edifícios comerciais, escolas e parques.

TapTapSee — Descreve, de forma genérica, qualquer foto que o usuário inserir no aplicativo. Assim, é possível para a pessoa cega saber a cor da roupa que está usando ou qual a vista de uma janela.

Voice Dream Reader — Facilita a leitura de livros no celular. O aplicativo aceita arquivos de texto nos mais diversos formatos e permite regulagem da velocidade da leitura.

Maneiras de tirar do sério alguém que não enxerga

Atitudes desagradáveis, comuns no cotidiano, segundo os cegos 

1 – Sem oferecer ajuda para atravessar a rua, agarrar o cego pelo braço e arrastá-lo pelo caminho.

2 – O mesmo vale para ajudá-lo a se sentar sem que ele solicite. Uma coisa é não enxergar, outra é ter dificuldade motora.

3 – Fazer comentários em voz alta sobre o cego ao passar por ele. É deficiente visual, não auditivo.

4 – Em vez de fazer perguntas diretamente a ele, como seu nome ou o que gostaria de comer, dirigir-se sempre a seu acompanhante.

5 – Decidir, sem consultá-lo, que determinada atividade física (como corrida) é muito perigosa para ele. Cada pessoa conhece os próprios limites.

6 – Tomar cuidado excessivo, o tempo todo, para não usar verbos como “ver” e “olhar”. Por exemplo: pedir desculpas por ter indagado se o deficiente “viu um filme”.

7 – Repetir o tempo todo a surpresa por ele trabalhar, divertir-se, namorar, ter filhos. O cego não quer necessariamente ser tratado como uma lição ambulante de superação.

8 – A mais irritante: mover, sem avisar, algum objeto de sua casa ou mesa de trabalho.

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