Por Mário Viana (mario@abril.com.br)
Não há, entre as setenta obras espalhadas pelas salas do Museu de Arte Moderna (MAM), no Parque do Ibirapuera, nenhuma rua de São Paulo ou prédio que se possa reconhecer. Mesmo assim, a exposição Anita Malfatti: 100 Anos de Arte Moderna dá a sensação de uma viagem no tempo. A mostra celebra a primeira manifestação de pintura modernista no Brasil e revela, ao público de hoje, que o linchamento cultural não nasceu com as redes sociais. apenas ganhou mais fôlego.
Paulistana, descendente de americanos, alemães e italianos, vitimada por uma deficiência no braço direito que a obrigava a usar a mão esquerda para pintar, Anita pagou caro por telas nada acadêmicas, como O Homem Amarelo. Em 1917, o escritor Monteiro Lobato fez uma crítica tão demolidora nas páginas do jornal O Estado de S. Paulo que muita gente destruiu as pinturas já compradas — como num boicote organizado pelo Facebook. Artisticamente, Anita nunca mais se recuperou do golpe — embora tenha feito parte de comissões julgadoras de prêmios ao lado de seu maior detrator. Não há contradição: o tempo passa, feridas cicatrizam e as contas precisam ser pagas no fim do mês.
Não são as pinturas que nos fazem voltar à São Paulo de outras épocas, mas algo impalpável. Começa pelo nome da artista. anitas saíram de moda. O romance de Mário Donato Presença de Anita foi lançado em 1948, causou barulho quando virou minissérie de TV, em 2001, mas não registrou nenhuma corrida aos cartórios. Nem mesmo a cantora Anitta, de Bang e outros sucessos, desmente a tese: seu nome de verdade é Larissa.
Há uma nostalgia nos retratos dos artistas e ricaços que anita Malfatti pintou, alguns por amizade, outros para faturar uns trocados. São rostos que nos levam direto às ruas do centro, por onde circulavam anita e sua gangue — a também pintora Tarsila do Amaral e os escritores Oswald de Andrade, Menotti del Picchia e Mário de Andrade, que dizem ter sido o crush platônico de nossa heroína.
Passei pelo centro alguns dias depois de ver a exposição do MAM. Deu uma saudade dos tempos que, por questões de idade, não vivi. a Confeitaria Vienense, na rua Barão de Itapetininga, era quase uma casa fantasma na única vez em que lá estive, no começo da década de 80, pouco antes de ela fechar. Entre os anos 40 e 60, era ponto de encontro dos chiques e famosos da cidade. O tempo passou e levou também a escola de dança e etiqueta de Madame Poças Leitão, que funcionava no mesmo prédio. Hoje, estaria à míngua por falta de interessados, tanto em rodopios de salão quanto em boas maneiras.
Anita deve ter batido ponto também na Livraria Teixeira da rua Marconi. Era a teteia literária dos anos 50. Escritores renomados lançaram por lá suas obras, bajulados pelos novatos da época, como a bonitona Lygia Fagundes Telles e o divertido Marcos rey (que já me antecedeu nesta página, vejam o peso). Hoje em dia, funciona por ali uma lojinha de qualquer coisa, menos livros.
O centro perdeu o mistério e suas boas surpresas. As figuras que borboleteavam entre o Teatro Municipal e a Praça da República, que tomavam chá no Mappin e esperavam o bonde, estão apenas penduradas numa parede de museu do Ibirapuera, provavelmente saudosas dos velhos tempos.