Capotar é uma arte

Confira a crônica da semana

Por Mário Viana
Atualizado em 14 fev 2020, 16h04 - Publicado em 27 abr 2018, 06h00
 (Attílio/Veja SP)
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Era para ser um almoço de despedida, em torno de uma amiga de mudança para Portugal. Cardápio bom, companhias divertidas, várias garrafas de vinho, seguidas de doses de licor caseiro de limão-siciliano. Tudo correu às mil maravilhas até a hora de chegar de volta em casa.

Acordei no meio da noite, luzes acesas em todos os cômodos, a roupa atirada de qualquer jeito numa cadeira — e a sensação indisfarçada de que os pés se fartaram de pisar alguma jaca. a conclusão foi óbvia: capotei.

Capotar é um verbo antigo. Segundo o dicionário, veio do francês e ganhou versão portuguesa no fim do século XIX. Embora seja mais usado para falar de veículos que viram na estrada, ficando com as rodas para cima, capotar também se aplica a quem cai dormindo de cansaço. a posição em que se dorme e acorda não classifica ninguém para a imagem Sensual do ano.

Pelo menos, o sono de quem capota é profundo. O despertar é brusco, quase no susto, como se a criatura voltasse dos sonhos de uma vez e à força. Quem capota sempre estranha o lugar onde dormiu, mesmo que seja a própria cama. Um conhecido meu, desmaiado de sono, acordou no meio da noite segurando as calças na altura dos joelhos: capotara enquanto tirava a roupa.

O que foi feito depois da quarta, quinta ou sexta taça muitas vezes parece uma defesa acionada pelo cérebro, a fim de evitar a sensação de vergonha. O pior é que não evita: você passa o tempo todo tentando reconstituir os passos e esbarrando no breu do esquecimento.

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Quem capota apenas se deixa abater pelo cansaço. a memória resta razoavelmente intacta. Um detalhe ou outro fica de fora — a conta foi paga? Você se despediu direitinho de todo mundo? —, mas logo tudo volta a entrar nos eixos. não precisa nem fazer chá de boldo.

O problema da capotagem é que ela não escolhe hora nem lugar. Quando menos se espera, a pessoa está praticamente diluída no sofá de uma casa estranha, inerte, quase roncando. Quem nunca passou por isso precisa acreditar nos testemunhos: é um vexame — melhor do que dizer certas verdades ao chefe na festa de fim de ano da firma, mas ainda assim vexame.

Muitos anos de estrada, incontáveis carraspanas no currículo, sinto-me capacitado a espalhar alguns conselhos em torno da capotagem etílica. Muitos, é bom que se diga, pertencem ao domínio da mais pura teoria. Mas não custa falar.

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É sempre melhor capotar antes de iniciado o processo de desmonte moral, incluindo o choro à beira da piscina. Treine o organismo para despertar da forma mais natural possível. Essa coisa de ficar olhando tudo ao redor como se tivesse desembarcado de Marte sem falar o idioma dos terráqueos é péssima.

Não importa o que ou quanto você tenha bebido, tente a todo custo manter o mínimo de coordenação motora e engolir o comprimido contra ressaca antes de cair em sono profundo. E, por uma questão de etiqueta, caso capote em casa alheia, não dê a impressão de que a festa estava chata. Às vezes, estava mesmo, mas não é de bom-tom jogar isso na cara de ninguém.

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