O risco de um apagão funerário em São Paulo em época de Covid-19

Com serviço no limite, prefeitura contrata 220 sepultadores temporários, aluga vinte rabecões e vai construir cemitério vertical durante pandemia

Por Pedro Carvalho, Yan Boechat
Atualizado em 27 Maio 2024, 18h29 - Publicado em 3 abr 2020, 06h00
Três pessoas com máscaras de proteção carregam caixão de vítima do coronavírus
Vítima do novo coronavírus: família ajuda a levar o caixão (Yan Boechat/Veja SP)
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Quando Amyr Klink cruzou o Atlântico Sul em um barco a remo, em 1984, levou consigo um conjunto de baterias para fazer funcionar a parte elétrica da embarcação. Mais tarde, ao narrar a aventura no livro Cem Dias entre Céu e Mar, ele se lembraria de agradecer à Vieira Baterias pelo equipamento. Na quinta-feira (26), seu Célio Vieira, 92, o fornecedor de Amyr, foi sepultado no Cemitério Vila Mariana, vítima da Covid-19. “Ele tinha muito orgulho daquela parceria. Meu pai nunca se formou, mas era um engenheiro de mão-cheia”, conta Adriana Vieira, 57 — dias depois, ela também seria diagnosticada com a doença e passaria ao isolamento em casa.

Foi um funeral dos tempos da pandemia. Apenas Adriana, o marido e o irmão puderam acompanhar a cerimônia de menos de quinze minutos. Os sepultadores usavam avental branco, máscara, óculos de proteção e grossas luvas azuis. Mas não se distinguiam apenas por isso. Naquela tarde de sol, embora nenhum outro enterro acontecesse no cemitério, somente dois funcionários carregavam o caixão de Vieira. A certa altura, a dupla não deu conta e o ataúde ameaçou tombar. Os familiares, alguns sem luvas, acudiram e pegaram nas alças. A explicação para a cena triste: nos idos de 2005, o Cemitério da Vila Mariana contava com dez a doze sepultadores por turno. Agora, tem entre dois e três.

Na última semana, a Vejinha conversou com servidores dos 22 cemitérios públicos da capital paulista. O diagnóstico deixa a entender que o Serviço Funerário Municipal flertava com um colapso — e então veio a Covid-19, que pode fazer o número de mortos chegar aos milhares (pesquisa do Instituto Butantan projeta para o estado 111 000 óbitos). “O serviço funerário é um dos piores serviços prestados na cidade”, admite o prefeito Bruno Covas, em texto divulgado pela própria prefeitura, por ocasião do lançamento do edital de licitação dos cemitérios, em fevereiro, que previa ganhos de 1,8 bilhão de reais à municipalidade.

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Cemitério da Vila Formosa: o maior da rede pública paulistana (Yan Boechat/Veja SP)

Agora, os gestores correm para aliviar esse quadro. Na segunda-feira (30), a prefeitura contratou 220 sepultadores provisórios. A cidade contava com 257, mas 60% deles estavam afastados por ter mais de 60 anos, grupo de risco da Covid-19. A primeira leva começou a trabalhar na própria segunda. Os contratos são válidos por trinta dias, mas podem ser prorrogados. O município também alugou vinte rabecões, veículos adaptados para carregar caixões. A frota tinha 36. Do novo total, dez serão destinados exclusivamente a vítimas da Covid-19 e passarão por higienização mais frequente, como antecipamos na segunda- feira (30).

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Frota reforçada: dez rabecões só para casos da doença e roupa especial (Yan Boechat/Veja SP)

Os cemitérios públicos têm, normalmente, entre três e cinco sepultadores por turno. Em quase todos, assim como no da Vila Mariana, o número sofreu uma queda significativa ao longo da última década. “As últimas contratações aconteceram em 2012, enquanto as baixas são quase semanais”, afirma um dos administradores. Um parecer do próprio Serviço Funerário Municipal ao qual a Vejinha teve acesso, relativo à contratação emergencial em curso, menciona “a situação de calamidade que enfrentamos, aliado (sic) ao reduzido quadro de sepultadores que detemos”. “A situação inspira preocupação, tanto que estamos tomando todas essas medidas emergenciais”, afirma Alexandre Modonezi, secretário de Subprefeituras da cidade.

Em outro front dessa batalha, a prefeitura passou a buscar parcerias com crematórios privados durante a epidemia da Covid-19. A ideia é evitar cenas como as vistas em Bergamo, na Itália, onde caminhões do Exército levaram corpos para ser incinerados em cidades do interior. O único crematório público de São Paulo, na Vila Alpina, já funciona 24 horas nos sete dias da semana, e ainda assim é frequente que tenha filas para o serviço. Crematórios privados — como os de Embu das Artes, Guarulhos ou Itapecerica — aliviariam em caso de piora da situação na Vila Alpina, segundo Modonezi. O plano contra o apagão funerário, por fim, inclui a construção de um cemitério vertical em São Paulo. Ele terá capacidade para 1 000 corpos e será erguido no Cemitério São Pedro, onde fica o crematório da Vila Alpina. Feito de estruturas pré-moldadas, pode ser erguido em aproximadamente duas semanas, de acordo com o secretário.

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Entre aqueles que vivem na linha de frente desse serviço, os relatos — sempre anônimos, porque a prefeitura não permite entrevistas sem agendamento — revelam uma situação preocupante. “Deixaram a coisa chegar a um ponto em que, se um funcionário meu cair doente, vamos ter problemas.” “O ideal seria termos o dobro de sepultadores.” “Tenho trinta anos nesse serviço, antigamente o que a gente fazia em cinquenta pessoas agora nós fazemos em cinco.” “Os cemitérios foram sucateados para ser privatizados, mas ninguém contava com essa crise.” Os servidores também levantam suspeitas de subnotificação de casos do coronavírus. “Temos tido muitos sepultamentos registrados como ‘doença respiratória indeterminada’ ou ‘pneumonia grave’”, dizem. Os cemitérios públicos têm registrado uma média semelhante à histórica: cerca de 250 enterros por dia. Mas é preciso considerar que houve queda no número de mortes por acidentes de trânsito e outros traumas.

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Cemitério da Vila Formosa: covas abertas (Yan Boechat/Veja SP)

São Paulo corre para dar um suporte adequado a famílias que, no caso de uma morte por Covid-19, passarão de qualquer maneira por uma situação trágica: um enterro com caixão fechado, sem a presença de parentes nem amigos para uma cerimônia apropriada. “Não fosse nos tempos atuais, no velório do meu pai teria umas 200 pessoas”, diz Adriana, do início do texto. “Ele era uma pessoa muito querida”, conta. Ao final do brevíssimo enterro na Vila Mariana, ela deixa uma pétala de rosa branca sobre o caixão e se despede do pai. Em seguida, caminha para a saída do cemitério ao lado do marido e do irmão, cabisbaixos e em silêncio. Não podem se abraçar.

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Publicado em VEJA SÃO PAULO de 8º de abril de 2020, edição nº 2681.

 

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