Cartório cai nas graças dos gays
26º Tabelionato de Notas, na Praça João Mendes, vira referência para a turma do arco-íris, interessada na Escritura Pública de Convivência Afetiva
Quem entra no 26º Tabelionato de Notas, em um prédio comercial na Praça João Mendes, no centro, pode pensar que se trata apenas de mais um estabelecimento do gênero: tem luz fria, guichês e um incessante vaivém de pessoas carregando papeladas. Isso até chegar à sala de Paulo Roberto Gaiger Ferreira, decorada com duas telas da artista plástica Maria Tomaselli. É dali que despacha o tabelião gaúcho de 49 anos, casado com uma publicitária e pai de três filhos, responsável por transformar o lugar em referência para a turma do arco-íris. Todos os dias, o escritório recebe pelo menos três ligações de homossexuais interessados em detalhes sobre a Escritura Pública de Convivência Afetiva, cujo objetivo é oficializar o relacionamento entre pessoas do mesmo sexo. “Viramos uma grife no que diz respeito ao assunto”, conta ele. Vários tabelionatos do país se recusam a fazer esse contrato com receio de ir contra a Lei nº 8935/94, que tem um artigo que proíbe lavrar documento contrário à moral e aos bons costumes. Isso, evidentemente, varia de interpretação para interpretação. No primeiro trimestre deste ano, foram lavrados no 26º Tabelionato 69 escrituras de relacionamentos homoafetivos — 70% entre pares masculinos. “Elas são o amparo judicial que garante os direitos desse público.”
Foi por isso que o geógrafo Alexandre dos Santos procurou o tabelionato. Dividindo o teto e as contas há três anos com o seu parceiro, o agente comunitário de saúde Vagner Leite, faz um ano que ele tenta incluí-lo como beneficiário do plano de saúde da empresa onde trabalha. “Agora, meus direitos devem prevalecer”, afirma. A dupla assinou o contrato no dia 2 deste mês. “Demos uma festinha em casa para comemorar ao lado de amigos e parentes.” Juntas há seis anos, a advogada Hanna Korich e a editora Laura Bacellar formalizaram sua história de amor em 2008. O objetivo era definir temas como partilha de bens e herança. “Entre outras coisas, o registro zela por nossos interesses em situações de separação e briga com familiares”, explica Hanna. Embora 90% dos casos lavrados sejam entre paulistanos, há demanda de clientes de estados como Pernambuco, Mato Grosso do Sul e do Distrito Federal.
O “noivo” mais famoso que já esteve no tabelionato é o estilista Alexandre Herchcovitch. Em julho do ano passado, o titã da moda paulistana formalizou seu relacionamento com o também estilista Fábio Souza, dono do brechó À La Garçonne, em Pinheiros. Há três anos juntos, o casal discreto abre exceção no que diz respeito à escritura. “Divulgar nosso caso é um ato político, pois até poucos anos atrás fazer esse documento era impossível”, afirma Souza. Entre os fatores positivos apontados pelo casal está a diminuição da burocracia. “As vantagens vão desde ter o mesmo plano de saúde até poder registrar em nome dos dois um filho, caso algum dia adotemos uma criança.”
No Brasil, tanto o casamento quanto a união civil não são permitidos entre pessoas do mesmo gênero. “A diversidade de sexos é o requisito essencial de ambos”, informa Adriana Galvão, presidente do Comitê de Estudos da Diversidade Sexual e Combate à Homofobia da seção paulista da Ordem dos Advogados do Brasil. “A escritura se torna ainda mais importante para o casal gay provar a convivência e o patrimônio conquistado.” Ainda que informalmente muitos a chamem de “união” ou “casamento”, na prática ela vale como documento jurídico — não como estado civil. “Mas, entre amigos, tudo bem um chamar o outro de marido”, diz Adriana.
O contrato pode englobar cláusulas pertinentes ao regime de bens, à herança e até indicar o responsável pelo poder de decisão em casos de ortotanásia (suspensão do tratamento de vítima de doença incurável). “Criar documento não é igual a preparar cheeseburger”, compara o tabelião Ferreira. Se duas pessoas o procuram apenas para pôr no papel o tempo de convivência, podem sair de lá com o documento em menos de trinta minutos. Mas o processo pode durar um mês se incluir mais cláusulas. Entre os gays, 60% preferem adotar a comunhão parcial dos bens, 30% querem a separação total e 10% optam pela comunhão universal, segundo dados do 26º Tabelionato.
Para oficializar o relacionamento homossexual, paga-se uma taxa de 252,11 reais. Esse valor dobra se o casal quiser que, digamos, a hora do “sim” seja em outro lugar, como um bufê. “A partir de julho, vou servir taças de champanhe e bem-casados”, promete o tabelião. Detalhe: nem todos os que se declaram marido e marido ou mulher e mulher se assumem publicamente. “Muitos querem seus direitos garantidos, mas sem fazer questão de alardear a orientação sexual.”
A DEMANDA DO 26º
3 ligações de casais homossexuais atrás de detalhes sobre a Escritura Pública de Convivência Afetiva são recebidas por dia
20 contratos entre pessoas do mesmo sexo são oficializados todos os meses
70% das escrituras tratam de casais masculinos
252,11 reais são cobrados para oficializar o relacionamento
504,22 reais é a taxa para os que quiserem assinar os papéis em bufês e afins