Casais homossexuais se casam de papel passado
Cartórios da cidade registram hoje cerca de quarenta uniões homoafetivas por mês, seis vezes mais que no ano passado
Um nasceu no Paraná, outro em São Paulo. Eles se conheceram durante um verão em Florianópolis há quatro anos e, apaixonados, decidiram morar juntos três meses depois. Mudaram-se para cá em 2011. Dividem atualmente um apartamento na região da Avenida Paulista e também as responsabilidades pelo cão Igor, da raça basenji. Gostam de ir ao cinema, de fazer jantares em casa, de sair para beber com amigos e ganham a vida tocando os negócios de uma loja de roupas femininas na Granja Viana. O curitibano Thiago Henrique da Fonseca Lima, de 24 anos, e o paulistano Leonel Rodrigues Lima Neto, 31,trocaram alianças de ouro branco — ambos vestidos de ternos idênticos da grife Zara — no dia 27 de abril.
As testemunhas da cerimônia civil foram suas mães, que posaram para as fotos com um sorriso de orgulho no 34º Cartório de Registro Civil de São Paulo, localizado na Rua Frei Caneca, no bairro de Cerqueira César. “Tomamos a decisão após passarem a aceitar esse tipo de casamentos em a necessidade de autorização judicial”, explica Thiago, que acrescentou no RG o sobrenome do companheiro. “Temos uma vida em comum, nada mais natural do que fazermos o que todo casal heterossexual faz”, complementa Leonel.
Uma jurisprudência criada pelo SupremoTribunal Federal passou a garantir na prática, desde o fim de 2011, o direito à formalização das uniões gays no país. Os cartórios, no entanto, exigiam a autorização de um juiz para dar andamento à papelada. “A peregrinação poderia ser longa, e o pleito estava sujeito a sofrer derrotas na primeira e segunda instâncias”, explica o desembargador José Renato Nalini, corregedor-geral da Justiça do estado de São Paulo.
Para acabar com o problema, ele criou no início deste ano a regulamentação que equiparou os procedimentos para casamentos nos cartórios paulistas. Ela entrou em vigor a partir de março. Na capital,os efeitos práticos da medida foram imediatos. De fevereiro para março, as uniões homoafetivas aumentaram de nove para 41. O número continua subindo. Em maio, o total chegou a 73, um recorde na história. Na média de 2013, ocorreram cerca de quarenta casamentos gays por mês, seis vezes mais que no ano passado. “Ficou claro que havia uma demanda reprimida”, afirma Nalini.
O cartório de Cerqueira César é o campeão em uniões entre pessoas domesmo sexo na metrópole. “Cerca de 20% dos casamentos realizados aqui nos últimos meses são entre gays”, contabiliza Adolpho José Bastos da Cunha, cartorário responsável. Segundo ele, 30% dessas uniões gays são em comunhão universal de bens, enquanto esse número não chega a 1% entre heterossexuais.“Tem casais de homens com homens formados há décadas. Eles precisam deixar no papel que tudo o que conquistaram pertence a ambos”, explica Cunha.
Além de abrigar a passeata gay (neste domingo, 2, ocorre na Avenida Paulista a 17ªedição do evento), o bairro concentra vários points frequentados por homossexuais. Na Rua Frei Caneca, por exemplo ,bombam as boates A Lôca e O Gato. O casal formado pelo massoterapeuta Henri Akiyama, de 39 anos, e pelo técnico em enfermagem Daniel Ricardi Akiyama, 31, mora em Guaianazes, na Zona Leste, mas escolheu o cartório de Cerqueira César para formalizar a união, em abril, por questões práticas.“É mais bonito do que o da nossa região e, além disso, meus padrinhos moram no pedaço”, justifica Henri.
No mesmo dia em que assinaram a papelada, celebraram à noite com uma festa para 200 pessoas. A comemoração, que consumiu deles um investimento de 15 000 reais, tinha sushis, bem casadose show de uma drag queen, mas o que deixou os convidados surpresos foi a adaptação do buquê: cada um jogou um boneco Ken, marido da Barbie, para os amigos solteiros. “Todos ficaram passados”, lembra Daniel.
Claro que nem tudo é festa para esse tipo de casal. Muitos preconceitos ainda persistem. “Quando falei do casamento no cartório, minha mãe disse que não iria participar dessa ‘palhaçada’ ”, conta Henri. “Ela sabe que sou gay, mas essa questão não é fácil para ela.” Henri conheceu Daniel através do Facebook. Depois de curtidase cutucadas mútuas, combinaram de se encontrar fora do universo online.Estão morando juntos desde fevereiro.
Outro cartório muito procurado para tal fim é o de Itaquera, na Zona Leste. Era lá que, na semana passada, com sorriso tímido e a mão nervosa comum entre as noivas, a aprendiz de chef de cozinha Amanda Fernandes de Souza, de 29 anos, conversava com os convidados e familiares antes de a juíza de paz chamar seu nome para se casar com a designer gráfica Eloah Cristina da Cunha, 27.
Só a família de Amanda estava presente— a de Eloah é mais conservadora e seguidora da religião Testemunhas de Jeová. Minutos antes de trocarem alianças, faziam planos de abrir um negócio no ramo de gastronomia e de ter um filho por inseminação artificial. “Elas têm todo o meu apoio para serem felizes”, afirmou Sonia Fernandes, mãe de Amanda. O destino na lua de mel foi Porto de Galinhas, em Pernambuco.
Em Itaquera, quarenta casamentos, heretossexuais e gays, são realizados por sábado. Há desde mulheres de véu e grinalda até quem chegue de calça jeans e com um filho recém nascidono colo.“Fomos bem atendidas por aqui, sem receber olhares tortos”, elogiou Eloah. Fora do circuito GLS, causa certo estranhamento o bairro da Zona Leste ser um dos mais procurados pelos casais. “Andando pelas ruas daqui não vemos muitos gays como na região da Frei Caneca”, conta Eva Maria Barbosa, uma das diretoras da Associação União de Moradores e Amigos de Itaquera IV. “Mas somos um bairro cheio de jovens e eles se casam sem ligar para o que os outros vão falar.”