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Cao Hamburguer emociona São Paulo com novo filme

Descendente de italianos e de judeus, o cineasta leva para as telas filme passado no Bom Retiro dos anos 70

Por Sandra Soares
Atualizado em 6 dez 2016, 09h04 - Publicado em 18 set 2009, 20h35

Com os olhos marejados, Cao Hamburger sorri constrangido e estala a língua no céu da boca repetidas vezes, numa espécie de tique nervoso. Embora tenha feito um filme inspirado no período em que seus pais foram prisioneiros da ditadura militar – O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias, raro sucesso simultâneo de público e crítica, em cartaz em dezenove salas da cidade e visto por mais de 130 000 espectadores nos dez primeiros dias de exibição –, o diretor paulistano mal consegue falar sobre o assunto. “Essa passagem é tabu na família”, explica ele. “Raramente conversamos a respeito disso, e minhas lembranças são meio nebulosas.” Na memória de Cao, 44 anos, ele tinha por volta de 8 quando seus pais, o casal de físicos e professores da USP Ernst e Amélia Hamburger, desapareceram. Teriam permanecido fora de casa “por dois ou três meses” (na verdade, foram menos de duas semanas). Nesse período, Cao e os quatro irmãos ficaram sob os cuidados das avós, a judia Charlotte e a católica Helena. “Quando voltou, minha mãe não saía da cama”, conta, com a voz embargada. “Dormia o tempo todo, dia e noite.”

Essas memórias ajudaram o cineasta a compor o roteiro de O Ano…, que tem levado platéias às lágrimas Brasil afora. O protagonista, Mauro, um garoto de 12 anos, vive com os pais em Belo Horizonte até ser deixado por eles no apartamento do avô em São Paulo, no bairro do Bom Retiro, reduto de imigrantes judeus. Interpretado em rápidas cenas por Paulo Autran, o avô morre. Mauro então se vê sozinho numa cidade desconhecida às vésperas da Copa do Mundo de 1970, que sonhava ver na companhia do pai. Depois… bem, é melhor assistir ao filme. A história não é exatamente autobiográfica, mas o personagem central guarda algumas características do diretor.– ambos têm apenas um dos pais judeu e são apaixonados por futebol, esporte que praticam como goleiros (Cao é santista). Além dessas reminiscências, o filme traz diversas referências afetivas do diretor. Mauro é mineiro, por exemplo, porque Cao queria prestar uma homenagem ao ex-jogador e comentarista esportivo Tostão, seu ídolo.

Nas últimas semanas Cao Hamburger vive emoções fortes não só porque a fita evoca lembranças difíceis. Com o longa-metragem, o segundo de sua carreira (depois de Castelo Rá-Tim-Bum – O Filme, com bilheteria total de mais de 800 000 ingressos), ele começa a ser reconhecido nas ruas. Principalmente no Bom Retiro, onde não consegue andar por uma quadra inteira sem ser abordado (curiosamente, a maioria das locações não foi feita lá, e sim em um bairro da cidade de Campinas).

Enquanto enfrenta uma maratona de entrevistas e viagens para a divulgação de seu trabalho mais recente, Cao ainda está às voltas com o anterior, a minissérie Filhos do Carnaval, produzida pelo canal pago HBO e levada ao ar em março deste ano. A série de seis capítulos estrelada por Jece Valadão concorre nesta segunda-feira (20), em Nova York, ao Emmy International, prêmio concedido pelos americanos aos melhores programas de TV estrangeiros. Com tudo isso, seu próximo longa, um suspense psicológico ambientado numa UTI, ainda nem começou a ser escrito, mas já atraiu o interesse da produtora Buena Vista International, que atualmente negocia o financiamento. “Sei de agentes estrangeiros que estão de olho no Cao”, afirma o diretor Fernando Meirelles, dos aclamados Cidade de Deus e O Jardineiro Fiel. “Certamente o filme tem ótimas chances em festivais internacionais, pois sua história funciona muito bem em qualquer língua.”

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Cao Hamburger já traz no currículo uma experiência profissional fora do Brasil. Foi na Inglaterra, entre 2000 e 2001, quando trabalhou em uma produtora de TV londrina, que ele teve a idéia de rodar O Ano… Lá, sentiu-se exilado. “O povo inglês não é ‘misturado’ como o brasileiro”, diz. “A partir dessa constatação, comecei a pensar na riqueza cultural de São Paulo, cidade acolhedora e de tantas nacionalidades, e tive vontade de mostrar isso na tela.” Carlos Império Hamburger, o Cao, seu apelido de infância, é filho de pai alemão (Ernst veio para o Brasil com 3 anos) e de mãe descendente de italianos. Costuma dizer que “já nasceu sanduíche” e que “acha estranho” seu último sobrenome, cujo significado original é “habitante de Hamburgo”, a segunda maior cidade da Alemanha. Apesar da convivência desde a infância com o lado judeu da família, teve muito que aprender sobre suas origens enquanto dirigia o filme. Ao recrutar pessoas das comunidades judaicas, fluentes em iídiche, para atuar na película, ele realizou buscas não só em São Paulo como no Rio de Janeiro, em Belo Horizonte e em Porto Alegre. Entrevistando e depois dirigindo esses não-atores, fez uma descoberta. “Quando dois judeus se encontram surgem ao menos três opiniões”, brinca. “Eles prezam a discussão, a rixa, e por isso mudam de discurso para nunca estarem de acordo um com o outro.”

A cena do enterro do avô do menino Mauro num cemitério israelita gerou uma longa contenda entre os figurantes – o rabino deve posicionar-se aos pés ou à cabeça do morto? A passagem foi registrada segundo o consenso a que se chegou naquele momento, mas até hoje o assunto gera polêmica quando apresentado a pessoas da comunidade. Antes e durante a filmagem, houve vários consultores para assuntos judaicos. Como não cresceu no Bom Retiro, Cao convidou um escritor nascido lá, Cláudio Galperin, para fazer parte da equipe de roteiristas. O fotógrafo Bob Wolfenson, também criado no bairro, emprestou imagens que clicou dos arredores de sua casa nos anos 70, época em que era adolescente e começava na profissão. As fotos ajudaram na composição de ambientes e figurinos da época.

A infância de Cao teve como cenário as ruas do Butantã, na Zona Oeste da cidade, e uma casa grande e acolhedora em frente a uma arborizada praça, onde seus pais vivem há quarenta anos. Lá, ele e os irmãos passaram a infância e a adolescência ouvindo a mãe tocar piano. O sobrenome do meio da família, Império, atesta o “pedigree artístico” deles, que são sobrinhos do cenógrafo, diretor de teatro e pintor Flávio Império, morto em 1985. “Convivemos muito com o Flávio e com nomes como a coreógrafa Miriam Muniz e a artista plástica Renina Katz, que freqüentavam a casa”, conta Pedro Mendes da Rocha, amigo de infância dos Hamburger e filho do arquiteto Paulo Mendes da Rocha. “Fazíamos aula de teatro no quintal e montávamos peças, geralmente paródias de programas de auditório.” Quase todos os filhos de Ernst e Amélia Hamburger viraram, de alguma forma, artistas. Só a mais velha, Esther, seguiu carreira acadêmica – antropóloga, dá aulas na Escola de Comunicações e Artes da USP. A economista Sônia tornou-se produtora de cinema; a arquiteta Vera trabalha como diretora de arte; e o caçula, Fernando, o “Feco”, é fotógrafo.

Cao chegou a entrar em três faculdades – de educação artística, geografia e filosofia –, mas não freqüentou nenhuma. “Meus anos de colégio foram tão ricos que acabaram servindo como um curso universitário”, afirma ele, referindo-se ao período em que fez o ensino médio no Colégio Equipe, um reduto de agitação cultural nos anos 70 e 80. O apresentador Serginho Groisman organizava shows, peças de teatro e outros eventos na escola, de onde saíram vários artistas, como Nuno Ramos, Rodrigo Andrade e Carlito Carvalhosa, integrantes do ateliê coletivo Casa 7. Foi também no Equipe que surgiram os Titãs. Cao chegou a integrar o grupo precursor da banda, Os Camarões, liderado por Nando Reis. “O sonho dele era ser músico”, diz o pai, Ernst. “Estudava muito, tocava guitarra, baixo e violão.” Foi dando aula de música numa pré-escola que o futuro cineasta descobriu que levava jeito para lidar com crianças. Boa parte de sua produção como diretor de cinema e TV tem esse público como alvo. Faz sentido. Quando Cao tinha 10 anos, perguntaram-lhe o que queria ser quando crescesse. “A resposta veio rápida: ele disse que pretendia ser pai”, recorda Amélia. Casado desde 1988 com a educadora e escritora de livros infantis Ana Maria Caira, Cao é pai de Antônio, de 17 anos, e Carolina, 16. Como o Mauro de O Ano…, que se interessou pela amiguinha Hanna, ele se apaixonou cedo por Ana Maria, aos 11 anos. “O filme é mesmo de memórias”, assume. Algumas de provocar risos, outras de levar lágrimas aos olhos.

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