Câmeras da PM inocentam réus após prisões com fraudes, mentiras e tortura
Levantamento exclusivo mostra material usado como provas em ações judiciais e que também ajuda a condenar reais culpados
Eram 7h30 da manhã do dia 4 de janeiro passado quando Augusto (nome fictício), 49, se preparava para pegar o ônibus rumo ao trabalho, em uma grande empresa de transportes, onde atuava como faxineiro. Entre sua casa e o ponto, no Butantã, Zona Oeste, foi parado pela Polícia Militar.
Dali, seguiu no bagageiro da viatura para a delegacia e, na sequência, para um presídio. A acusação: porte de 65 porções de maconha, 53 de cocaína e 51 pedras de crack, acondicionadas em uma sacola azul.
Três semanas antes, em Taipas, na Zona Norte, Lucas (também nome fictício), 26, correu dos policiais ao notar a chegada deles. Capturado no beco de uma favela após perseguição, o homem portava duas bolsas com 460 gramas de drogas, segundo os agentes da lei. O roteiro de Lucas foi o mesmo do de Augusto: camburão, delegacia e penitenciária.
Em comum, os dois acusados, que não se conheciam e tinham antecedentes criminais, passaram quatro meses presos e foram inocentados no julgamento graças às câmeras acopladas aos coletes dos policiais que fizeram as detenções.
No caso do Butantã, as imagens mostraram que a acusação contra Augusto ocorrera antes de os agentes apresentarem a sacola com as drogas, que estava distante do acusado, atrás de um muro, o que sinaliza possível flagrante forjado.
Já no processo sobre a prisão em Taipas, as gravações apontaram que o réu não só não estava no local indicado pelos policiais (o beco), como se encontrava dormindo em casa, para espanto do juiz que proferiu a sentença:
“Não houve perseguição, mesmo porque, não houve fuga. Não houve atitude suspeita, tampouco fundada suspeita. Houve, sim, invasão, violação do asilo inviolável do ser humano, sem qualquer justificativa, pois, quem dorme, não tem condição de autorizar a entrada (…). Espantei-me quando tive contato com as filmagens”. Na sequência, o magistrado determinou uma investigação contra os policiais que mentiram na hora da prisão, na delegacia e, depois, no julgamento.
As duas histórias de réus absolvidos após a utilização das chamadas bodycams (ou câmeras corporais, na tradução do inglês) como provas estão longe de configurar situações únicas.
Nos últimos meses, Vejinha acompanhou outras doze ações que culminaram com a libertação de pessoas acusadas de forma infundada, mesmo que em alguns casos elas tivessem culpa por outras imputações criminais.
Foi o que ocorreu com Rafael, 26, que atuava como olheiro de um ponto de tráfico, morava na rua e foi preso em flagrante, sob a imputação de participar de um assalto sucedido de sequestro nas imediações da Avenida Jornalista Roberto Marinho, no Campo Belo.
Após ser acionada por rádio, a viatura parou na entrada de uma favela e o abordou. Embora tenha negado desde o início qualquer participação no crime, o rapaz, que ganhava 100 reais por dia para um turno de doze horas, foi imediatamente acusado. “Sou só o campana, senhor”, disse, em áudio captado pela câmeras corporais. “Você faz campana e não sabe onde é o bagulho (sequestro)? Vamo fazer o seguinte: você vai cair nesse sequestro”, afirmou o policial.
A ocorrência seguiu com uma conversa por telefone do policial com o chefe do tráfico local (veja a transcrição abaixo.), que movimentou seus comparsas para procurar o sequestrado, que estava em outra favela.
Resolvida a história, com a localização da vítima, o policial responsável pela operação manteve a acusação contra Rafael, que foi imediatamente preso. No julgamento, cinco meses depois, após ouvir os áudios e ver as imagens, o juiz não teve dúvidas em absolver o olheiro pelo crime de sequestro. Como ele não foi denunciado por tráfico ou associação criminosa, mesmo tendo confessado atuar nesses tipos de delito, acabou liberado no dia seguinte.
Em outro caso de culpado que acabou solto após os equipamentos nos coletes dos agentes comprovarem ações ilegais por parte dos policiais, um assaltante de 39 anos, detido em flagrante por roubo no Tatuapé, foi parar nas ruas novamente. O motivo: preso e algemado no porta-malas da viatura, o homem foi retirado de lá, jogado no chão, espancado e amarrado pelos pés. Ao se debater, depois de um dos policiais pisar em seu pescoço, ficou nu no meio da rua.
“A despeito da gravidade dos crimes supostamente cometidos, da reincidência do acusado, do fato de ele estar em cumprimento de pena, no regime aberto, nenhum delito, por mais grave que seja, justifica a prática de outro, em especial pelos agentes do estado”, afirmou a juíza do caso, ao expedir o alvará de soltura em agosto do ano passado. Dois meses depois, o assaltante foi condenado a quatro anos de detenção e voltou a ser preso.
Em nota, a Polícia Militar diz que os casos mencionados foram rigorosamente investigados pelas corregedorias das polícias e relatados ao Poder Judiciário. “Cabe ressaltar que todas as denúncias de desvio de conduta, incluindo o uso irregular das COPs (câmeras operacionais portáteis), são alvo de procedimento apuratório interno. Confirmadas as irregularidades, os responsáveis são punidos, reafirmando o compromisso de legalidade e transparência da instituição (…). A Polícia Militar é uma instituição legalista e não tolera qualquer tipo de desvio ou irregularidade por parte de seus agentes”, diz o documento.
Em quatro anos, cerca de 3 000 inquéritos foram instaurados, dos quais 70% resultaram em punição aos envolvidos.
Não é apenas em casos de inocência de réus que as câmeras dos policiais militares são usadas nos tribunais. Para a confirmação de crimes, as imagens também vêm servindo de provas incontestes na hora de a Justiça condenar culpados.
Em fevereiro, um homem de 43 anos foi condenado a quatro anos de prisão por porte ilegal de armas, após ação policial ser filmada em meados do ano passado, em Itaquera. No mesmo mês, um traficante que agia no Tremembé também foi sentenciado a cumprir pena de detenção (seis anos), em processo no qual as COPs foram preponderantes para a comprovação do dolo.
“A possibilidade de produzir provas é um dos elementos centrais quando falamos na utilização das câmeras corporais. Elas revolucionaram a investigação policial e são importantes tanto para absolver inocentes quanto para condenar culpados”, afirma Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Em São Paulo, a política de utilização do sistema na PM começou em 2020. Atualmente, há 10 125 equipamentos em operação no estado. Na última segunda-feira, a gestão Tarcísio de Freitas, após muitas idas e vindas quanto à continuidade do programa, abriu uma licitação para substituição das câmeras atuais por 12 000 novas.
Porém, a forma de gravação das imagens, por acionamento dos agentes e não mais de forma automática, gerou críticas entre estudiosos do tema. “Deixar a cargo do policial é problemático. Há dois estudos, feitos no Rio de Janeiro e em Harvard, nos Estados Unidos, que apontam que sete em cada dez agentes não acionam as imagens. A gente defende que o modelo de gravação automática, que é o mais avançado que existe, seja mantido”, afirma Fernanda Balera, coordenadora do núcleo de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública paulista.
O caso foi parar no Supremo Tribunal Federal e o ministro Luís Roberto Barroso determinou, em caráter liminar, na terça (11), que a gestão estadual pode seguir o certame com as condições que propôs, mas precisará prestar contas dos resultados das ações em um período de seis meses. Que a discussão sobre o modo de gravação não vire uma novela.
Publicado em VEJA São Paulo de 14 de junho de 2024, edição nº 2897