Aumenta o número de transplantes em São Paulo
Graças ao trabalho das equipes de captação de órgãos,o aumento foi de 58% no primeiro semestre deste ano em relação ao de 2007
Na quarta-feira (27), o gráfico Maurício Masferrer, de 57 anos, teve dupla alegria ao acordar de uma cirurgia no Hospital Israelita Albert Einstein. Além de saber que seu transplante de fígado havia sido bem-sucedido, conheceu quem conseguiu o órgão que lhe salvou a vida. Era a primeira vez que o enfermeiro Edvaldo Leal de Moraes, do setor de captação de órgãos do Hospital das Clínicas, ficava frente a frente com um receptor. Na profissão há doze anos, até então o piauiense só tinha tido contato com famílias de doadores. Ao ver Masferrer saudável e falante, desabafou: “Cuide bem desse fígado, pois deu trabalho encontrá-lo!”. Com sorrisos largos e um firme aperto de mãos, enfermeiro e paciente celebraram a vitória sobre a morte. Vítima de uma hepatite B, que evoluiu para cirrose e tumor, Masferrer precisava de um fígado novo havia mais de cinco anos. A aguardada ligação chegou às 8 horas de domingo ao Einstein, que mantém convênio com o SUS. Do outro lado da linha, Moraes informava que um adolescente de 14 anos, de Pirituba, tivera morte encefálica após levar um tiro. “Fiquei emocionado porque a mãe do garoto decidiu doar todos os órgãos e ainda fazer uma campanha contra a violência”, conta o enfermeiro. Além de o fígado ser dividido entre Masferrer e um bebê de 10 meses, houve receptores compatíveis para os pulmões, pâncreas e rins do garoto.
Moraes faz parte da Organização de Procura de Órgãos e Tecidos (OPO), um serviço que só existe no estado de São Paulo. Na capital, mobiliza trinta médicos e enfermeiros espalhados por quatro centros de referência – Hospital das Clínicas, Hospital São Paulo, Instituto Dante Pazzanese e Santa Casa de Misericórdia. Em busca de doadores, eles monitoram 24 horas as UTIs de 257 hospitais particulares e públicos da região metropolitana. Criada em 1997, a OPO conseguiu ampliar o número de doadores efetivos desde que a Central Estadual de Transplantes começou a dar cursos de capacitação para funcionários de instituições de saúde. “Em dois anos, treinamos 350 profissionais. Serão mais 150 até dezembro”, afirma o coordenador da central, Luiz Augusto Pereira. Isso aumentou a captação de órgãos e fez diminuir em 11% o número de pessoas na fila de transplantes em todo o estado – hoje são 14?478. Entre janeiro e julho, foram 1?769 cirurgias, 58% a mais que no mesmo período do ano passado (1?122). Apesar dos avanços, há ainda uma desproporção muito grande entre o número de doações e o de pacientes que aguardam o momento da cirurgia. “Por causa disso, quem espera por fígado, coração e pulmões corre o risco de morrer na fila”, diz o cirurgião de transplante Sergio Meira, do Albert Einstein.
Pólo de referência em transplantes feitos pela rede pública de saúde, São Paulo concentra alguns recordes. O Hospital do Rim e Hipertensão, da Unifesp, é a instituição que realiza o maior número de transplantes de rim no mundo: mais de 500 por ano. Até julho, foram 148 com órgãos de doadores mortos, 21 transplantes conjuntos de rim e pâncreas (para pessoas com diabetes e insuficiência renal) e 234 inter vivos. Outra boa notícia é que, com o crescimento de 85% no número de transplantes de córnea, desde junho não há fila de espera para esse procedimento. Hoje, na capital, existem 25,9 doadores de órgãos e tecidos por milhão de habitantes. No restante do estado, a média é de 12 por milhão. Para se ter idéia, a Espanha, campeã mundial em captações, tem 34,3 doadores por milhão, mas realiza menos cirurgias que o Brasil, porque sua população é menor.
A missão de quem trabalha nessa área é encontrar pacientes com diagnóstico de morte encefálica, condição essencial para a doação. Essa forma de colapso costuma ocorrer após derrames, traumas de crânio ou tumores cerebrais. O coração continua batendo e a respiração é mantida artificialmente por aparelhos para que não seja interrompida a irrigação sanguínea dos orgãos. Nesse momento, começa uma corrida contra o relógio. Um coração, por exemplo, só pode ser utilizado até quatro horas depois da morte do doador. Por isso, o hospital deve avisar a OPO imediatamente. Monta-se então uma rede de troca de informações que pode levar à extração dos órgãos e à busca das pessoas que constam da lista única do estado. “Quanto mais cedo formos informados, maior a chance de conseguirmos nos deslocar para o local a tempo de avaliar o potencial doador, consultar os familiares sobre a possibilidade de doação e organizar a cirurgia de extração”, afirma o nefrologista Reginaldo Boni, diretor da OPO Santa Casa, líder no ranking de captações em todo o estado. “O problema é que, de cada seis potenciais doadores, apenas um é notificado.”
Além de investir em capacitação, a Secretaria de Estado da Saúde passou a designar plantonistas para hospitais públicos com potenciais doadores. “São locais como o Mandaqui, o M’Boi Mirim e o Geral de Guarulhos, onde costuma haver muitos casos de morte encefálica por trauma”, afirma o cirurgião de transplantes Ben-Hur Ferraz Neto, do hospital Albert Einstein, parceiro da secretaria nesse programa. Acionados a qualquer hora do dia ou da noite, cabe aos captadores de órgãos a parte mais dura do processo: conversar com o cônjuge, filhos, pais, irmãos ou avós do morto. “A equipe não convence, não faz barganha nem apela para a lista quilométrica para sensibilizar a família”, afirma o coordenador da OPO do HC, Leonardo Borges. “Apenas explica que uma doação pode salvar até oito vidas e que o corpo será devolvido sem deformidades.”
Cerca de 70% dos parentes consultados concordam com a doação dos órgãos. Muitos cedem também ossos, tendões, pele, vasos sanguíneos e cartilagens, que poderão devolver qualidade de vida a pessoas que precisam de enxertos. Mas há quem faça ressalvas. “Alguns doam apenas um pulmão ou um rim porque acreditam que o ente querido precisará do órgão-gêmeo na outra vida”, conta o enfermeiro Moraes, do HC. Outros se recusam a tocar no assunto e até ofendem verbalmente os profissionais. “Uma vez fui tão xingado que precisei sair escoltado pela segurança do hospital”, afirma César Marcelino, enfermeiro da OPO do Instituto Dante Pazzanese. Para evitar problemas, ao encontrar a família eles carregam apenas uma pasta com os documentos necessários para explicar o processo. Se têm de transportar algum órgão, utilizam geladeiras portáteis comuns, identificadas com dados do doador. A aceitação é maior quando a pessoa deixa claro em vida que gostaria de doar seus órgãos. No momento da perda, os parentes costumam se lembrar desses episódios e respeitam a vontade do falecido. Uma medida provisória anulou a doação presumida, prevista na Lei de Transplantes. Desde então, aquela observação que ficava na carteira de motorista ou na identidade não tem valor legal.
As etapas da doação
Diagnóstico
A morte encefálica ocorre quando o sangue deixa de circular pelo cérebro. Irreversível, o quadro determina que o paciente está morto. O coração continua batendo e a respiração é mantida por aparelhos. Se nada for feito, os órgãos deixarão de funcionar.
A contraprova
Antes de acionar a central de transplantes, o hospital tem de fazer dois testes neurológicos, assinados por dois médicos, em um intervalo mínimo de seis horas. Fazem-se ainda exames específicos, como o doppler transcraniano. Só então o atestado de óbito pode ser emitido.
Entrevista com a família
Profissionais de captação de órgãos dirigem-se ao local para conversar com a família. A entrevista não é feita na porta da UTI nem ao lado do leito, e sim numa sala reservada, onde um médico ou enfermeiro explica sobre a doação.
Os familiares decidem
A manifestação do doador em vida, por meio de carta ou documentos, não tem valor legal. Durante a entrevista, parentes são consultados. Se concordarem, escolherão os órgãos que desejam doar.
Os órgãos são retirados
A central de transplantes verifica quem são os primeiros da fila e contata os hospitais onde eles estão cadastrados. As equipes de captação acompanham a retirada, para garantir que só sejam removidos os órgãos autorizados e que as incisões não causem danos à aparência do doador.
Ritos finais
Entre 24 e 36 horas após o diagnóstico de morte encefálica, o corpo é entregue à família. Dias depois, ela recebe uma carta de agradecimento informando quais órgãos e tecidos puderam ser transplantados (dependendo das condições clínicas do doador, nem todos podem ser utilizados). Informa-se o perfil do receptor – se é adulto ou criança –, mas nunca a sua identidade.