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Artistas famosos e anônimos improvisam para ter renda na quarentena

Sem shows, peças, filmes ou apresentações culturais, artistas e profissionais dos bastidores vendem comida, costuram e fazem outros bicos para se manter

Por Pedro Carvalho, Gabrielli Menezes e Guilherme Queiroz
Atualizado em 4 Maio 2020, 17h14 - Publicado em 1 Maio 2020, 06h00

Os 23.000 seguidores de Camila Márdila (a Jéssica do filme Que Horas Ela Volta, premiada como melhor atriz em Sundance) devem ter estranhado a postagem no Instagram, no início de abril: “Fettuccine — encomendas abertas”. Enquanto cumpre a quarentena em São Roque, interior de São Paulo, ela e o marido, o produtor cultural Bruno Girello, preparam a massa fresca e vendem os pacotes de 400 gramas por 20 reais. Chegam a produzir 20 quilos por semana. Na hora da entrega, feita na cidade e na capital, a atriz dirige e Bruno sai do carro, paramentado com máscara e luvas, para levar a comida aos fregueses. “Não paga a nossa vida normal, mas é uma renda, um fluxo de caixa”, ele diz. “Não sabemos quando poderá haver aglomeração de novo, quando vamos voltar a trabalhar”, completa Camila — ela, recentemente no ar em Amor de Mãe, teve projetos no cinema adiados pela pandemia; ele estava na semana de estreia da peça Língua Brasileira, de Felipe Hirsch com canções de Tom Zé, também postergada.

(Alexandre Battibugli/Veja SP)

O casal é um exemplo da criatividade que artistas e equipes de bastidores têm precisado mostrar nos tempos do novo coronavírus. No clássico da MPB, o vozeirão de Milton Nascimento dizia: “Todo artista tem de ir aonde o povo está”. Isso era antes da Covid-19. Agora, as palavras “povo” e “público” ganharam um sentido um tanto incômodo: aglomeração. A quarentena forçou o cancelamento de centenas de shows, peças, balés e outras atrações culturais em São Paulo — e existem dúvidas sobre como essas atividades vão funcionar após a pandemia. Os profissionais da arte, via de regra remunerados apenas pelas apresentações ou por “diárias” de gravação, ficaram sem fontes de renda. Anônimos ou famosos, eles agora recorrem a meios alternativos para pagar as contas: cozinham, costuram, dão aulas na internet e criam negócios inusitados.

(Ivany Camargo Rodrigues/Veja SP)

“O setor artístico estagnou. Foi o primeiro a parar e será um dos últimos a voltar ao normal”, diz Eduardo Saron, diretor do Itaú Cultural. Um levantamento da instituição mostra que as empresas de cinema, música, artes cênicas e atividades similares empregam cerca de 128 000 pessoas em São Paulo. Para complicar, 73,2% dos profissionais da cultura são autônomos, segundo o IBGE — são os cantores de barzinhos da Vila Madalena, os freelancers de ensaios de moda, e assim por diante. “Isso mostra a fragilidade do setor”, diz João Luiz de Figueiredo, professor da ESPM que fez um estudo sobre os impactos do vírus na área cultural. “No Estado de São Paulo, o PIB da cultura deve perder até 40 bilhões de reais em 2020 com o novo coronavírus”, ele calcula.

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(Rogério Pallatta/Veja SP)

Apenas no Itaú Cultural, 55 atividades deixaram de acontecer entre março e abril na capital. Nas 43 unidades do Sesc no estado, são 413 shows e atrações musicais, 114 apresentações de dança e 280 peças adiadas ou canceladas no período — ao todo, 4 600 artistas e técnicos trabalhariam nesses eventos. Os 113 teatros, bibliotecas e centros culturais da prefeitura estão fechados. O Municipal cancelou todos os balés e óperas até agosto. A Osesp já suspendeu dezenove concertos. A Virada Cultural, programada para setembro, não deve acontecer no formato que conhecemos. Um único clube musical, o Bourbon Street, já precisou suspender setenta shows. “É o momento mais desafiador que já vi nas artes”, afirma Hugo Possolo, secretário de Cultura de São Paulo.

(Alexandre Battibugli/Veja SP)

No Sesc, a situação acendeu a luz amarela dos administradores da rede. “Somos uma instituição que junta pessoas, que aglomera. Para nós, valia a máxima: quanto mais gente, melhor”, diz Danilo Miranda, diretor do Sesc-SP. “Fomos afetados profundamente.” Além dos cancelamentos, a instituição é vitima da queda nas vendas do comércio, que financiam a programação. “Somente por esse fator, vamos perder pelo menos 20% das receitas”, ele afirma. “É um problema que não termina nos artistas. Tem muita gente envolvida nas produções. As lives dos músicos, por exemplo, não resolvem o problema do iluminador, do porteiro do teatro…”, ele lembra.

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(Alexandre Battibugli/Veja SP)

O impacto nos bastidores das apresentações virou um problema para Adriana Monteiro, 53, que divulga as peças do Sesc e de grupos de destaque em São Paulo há mais de duas décadas. Ela estava prestes a atuar em um festival de teatro russo, que levaria clássicos do escritor Anton Tchekhov a três unidades da rede. Sem a renda dos espetáculos, passou a fazer comida para entrega na região do Alto de Pinheiros, onde mora. “Em abril, paguei só metade do aluguel”, ela diz. “Consigo vender até cinco porções de nhoque por dia. Mas vou me mudar da casa onde vivi por dezesseis anos e dividir um apartamento com uma amiga. Não posso terminar a quarentena cheia de dívidas”, explica.

(Paulo Manzato Jr/Reprodução)

O baque da Covid-19 sobre os bastidores deve provocar um problema para os futuros espetáculos. Parte das equipes — e até dos artistas — tem re- corrido a empregos temporários em outros setores. Um iluminador de palco que vira eletricista na construção civil, por exemplo. “A mão de obra da cultura é altamente especializada. Neste momento, os pequenos sofrem mais e buscam trabalho em outras áreas. Mas, passada a pandemia, as grandes empresas do setor terão dificuldades para recrutar bons funcionários”, diz Figueiredo, da ESPM.

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(Arquivo Pessoal/Reprodução)

O ator Marcio Louzada, 39, vive essa migração forçada. Há quatro anos, o carioca se mudou para o bairro paulistano de Santa Cecília para estrelar o musical My Fair Lady. Nos últimos meses, ele vivia papéis de destaque nos musicais A Bela e a Fera (era o príncipe) e Um Dia na Broadway, com sessões sempre cheias no Teatro Bradesco, do Shopping Bourbon Pompeia. As peças estão paradas desde a metade de março, o que interrompeu também os pagamentos do elenco. Louzada, então, revirou a agenda telefônica e arrumou um convite para apresentar um evento da IBM (feito pela internet, claro). “Deu certo. Já tenho mais dois compromissos agendados para maio”, ele diz. “Não é só um bico, é um nicho promissor. Pretendo apostar nessa área mesmo depois da quarentena”, conta.

(Arquivo Pessoal/Reprodução)

Para atenuar esses e outros efeitos da paralisação na cultura, a prefeitura e as principais instituições que levam arte aos paulistanos fazem planos de ajuda emergencial para o setor.

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A Secretaria Municipal de Cultura vai contratar 1 600 artistas por dois meses, para produzirem conteúdos digitais. O órgão também procura manter a programação dos centros culturais na internet (ou transferi-la para o segundo semestre) e antecipar editais e fomentos do fim do ano. “Estamos realocando as verbas da secretaria dentro das possibilidades atuais. Não será possível, por exemplo, fazer o São João. Esse dinheiro será usado para reforçar as atividades digitais dos centros culturais”, explica Possolo.

(Tatiana Marx/Veja SP)

O Itaú Cultural criou “microeditais de emergência” nos últimos dias. A instituição vai escolher 1 000 projetos que podem receber até 10 000 reais cada um para o pagamentos de direitos autorais. “Vamos beneficiar criadores nas artes cênicas, música, artes visuais e literatura”, diz Saron.

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(Arquivo Pessoal/Reprodução)

Enquanto lançam boias aos artistas, os líderes do setor procuram imaginar o cenário após a tempestade. “Uma coisa é certa: vamos precisar nos reinventar”, diz Danilo, do Sesc. “Esta crise terá um aspecto psicológico”, completa Figueiredo, da ESPM. “Mesmo quando as atividades forem liberadas, quem vai querer se espremer em um show ou entrar em um cinema fechado?”, ele se pergunta.

(Arquivo pessoal/Veja SP)

Os planos do Sesc, da prefeitura e de outros agentes culturais para a reabertura dão um norte sobre como essas atividades devem funcionar na cidade. Em comum, eles devem ter três pontos principais. O primeiro é o reforço das atrações virtuais, com produções mais caprichadas que nas lives caseiras. O segundo: shows e eventos presenciais não vão desaparecer, mas terão menos público e diversos cuidados sanitários. Por fim, será inevitável lidar com restrições orçamentárias. “O poder público vai precisar ajudar, para evitar um colapso nas artes”, diz Figueiredo. O pedido reverbera entre os empresários do ramo. “Anunciaram pacotes para outros setores, mas e o entretenimento?”, diz Christian Tedesco, vice-presidente do Tom Brasil. “Reduzimos 25% dos salários dos nossos sessenta funcionários. Nosso plano emergencial dá conta da situação até julho. Se passar disso (a paralisação), o que vamos fazer?”

(Arquivo Pessoal/Veja SP)

Enquanto esse esquisito futuro não chega, as primeiras baixas permanentes acontecem na cena artística paulistana. A Estação Satyros, um espaço de apresentações próximo ao teatro original do grupo, na Praça Roosevelt, precisou fechar as portas na semana passada. “Negociamos o valor do aluguel em janeiro (de 18 000 para 12 000 reais). A Estação nunca foi autossuficiente, mas, fechada, é impossível mantê-la”, diz Ivam Cabral, fundador da companhia de teatro. Para ele, não existe a possibilidade de que os teatros de São Paulo voltem a funcionar antes do fim do ano. “Com sorte, essa retomada acontecerá em 2021. A insegurança do público será uma questão importante.” Com tantas dúvidas sobre o coronavírus, uma rara certeza é a de que setores e classes sociais mais frágeis ainda sofrerão um bocado. “Mesmo se descobrirem uma vacina”, reflete Cabral, “ela vai demorar muito para chegar à Praça Roosevelt.”

Colaboraram Alessandra Balles, Alice Padilha e Juliene Moretti

Publicado em VEJA SÃO PAULO de 6 de maio de 2020, edição nº 2685.
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