Ailton Krenak: “Do sonho você extrai coragem”
Recém-chegado de sua primeira viagem a Paris, líder indígena fala sobre a poética da existência em São Paulo e avalia seu primeiro ano como imortal da ABL

A mão de Ailton Krenak solta o copo com o suco pela metade durante a entrevista e aponta para as árvores da Terra Indígena Krenak, no município de Resplendor, Minas Gerais. “Está escutando?”, pergunta. O ambientalista, filósofo, líder indígena e escritor interrompe sua resposta para mostrar o canto dos pássaros. “São as aves fazendo uma farra”, diz enquanto sorri ao parar para ouvir a sinfonia. “Elas não ficam coladas nesse cotidiano com o qual a gente se incomoda. Estão em outra”, provoca, revelando a capacidade de perceber, celebrar e respeitar o mundo ao redor.
Aos 71 anos, o escritor acaba de voltar de sua primeira viagem a Paris, onde lançou dois livros traduzidos para o francês: “Futur Ancestral”(Futuro Ancestral) e “Le Réveil des Peuples de la Terre” (O Despertar dos Povos da Terra). “Morria de medo de cruzar o Atlântico pelo céu”, confessa. Autor de mais de quinze livros, ele acaba de bater a marca dos 500 000 exemplares vendidos pela Companhia das Letras e será uma das estrelas da Bienal do Livro Rio, em junho. Nesta conversa com Vejinha, ele avalia seu primeiro ano como imortal da Academia Brasileira de Letras, fala sobre a poética da existência em São Paulo e sobre sua visão quanto ao futuro da humanidade.
Como buscar a natureza em uma grande cidade como São Paulo?
É preciso buscar primeiro em teu corpo, que respira, transpira natureza em tudo. A ideia de natureza como algo fora do corpo humano é uma abstração, pois tudo ao nosso redor é natura — claro que uma metrópole como São Paulo esconde a natura sob o concreto que tapa os rios e riachos do Ipiranga. São Paulo precisa repensar a poética da existência? Se uma cidade tem alma, ela deveria ser expressada nas suas águas. Não serei o primeiro a dizer que São Paulo tratou da pior maneira possível o espaço de constituição dessa grande metrópole, inicialmente soterrando todos os ribeirões e córregos e depois transformando em esgoto um corpo d’água da relevância dos rios Tietê, Pinheiros, Tamanduateí e todos os outros que banham essa grande cidade.
Dizem que a gente pode avaliar o grau de desenvolvimento de um povo olhando seus rios. Qual é a face da capital paulista?
A cidade tem essa contradição implicada que é a de reunir condições para produzir as mudanças que um país da América Latina poderia se permitir, mas não cumpre a promessa porque não consegue sequer oferecer saneamento básico para toda a população. Se você for ao Morumbi, vai encontrar o povo pankararu vivendo no Real Parque com o esgoto passando debaixo das suas casas. Se for para o Campo Limpo, Pirajussara e essas quebradas depois do Rio Pinheiros, vai ver a face oculta da maior cidade latino-americana que é de envergonhar qualquer um. A Avenida Paulista não é o rosto de São Paulo, é como se fizesse uma maquiagem muito bonita para ser exibida em dia de domingo.
Em abril, fez um ano de sua posse na Academia Brasileira de Letras. Seu discurso propôs fazer uma sinfonia com as mais de 300 línguas dos povos originários em vez de fazer uma lusofonia. Está conseguindo implementar o projeto Língua Mãe?
Minha cadeira na ABL é a plataforma Língua Mãe e nenhum de nós dois precisa estar sentado lá dentro. Todo mundo observa que estou distante daquela ideia folclórica do chá das 5. Vivo à beira do Rio Doce, bem longinho do Rio de Janeiro. A Língua Mãe pode ser feita de longe porque se apoia em novas tecnologias. O Museu Nacional dos Povos Indígenas (RJ), o Museu da Pessoa (SP) e a ABL são os promotores do projeto e o depósito do acervo é com a Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP).
Como continuar a sonhar em um mundo que está sempre para acabar?
O sonho não fica refém do Rio Doce, que está contaminado pelo minério, ou do Tietê, que está plasmado pelo esgoto que não cessa. Ele escapa e acontece em outro plano. Do sonho você extrai coragem e confiança de que a vida continua mesmo quando a transformação de tudo tenha nos feito adubo. O destino adubo não é uma má notícia (Krenak interrompe a entrevista e aponta para os pássaros). O sonho é a possibilidade de transcender, de saber que estamos neste mundo e vamos transformar. E se a transformação incluir nos mudar de constituição e de lugar no sentido material, está tudo bem. O sonho não é a ideia de você se travar no modo sapiens e dizer: vou fazer uma nave, estocar ração e, o dia que não der mais aqui, vou pra Marte. Esse tipo de mentalidade é crescente, mas é uma escolha que só pode ser feita por bilionários. Se não fizermos a mudança necessária, o mundo muda a gente.
“Nos acostumamos tanto com a abundância de tudo no planeta que achamos que tem um dispositivo permanente de produzir felicidade enquanto saímos por aí ‘pisando’ e andando”
Os seres humanos vão colapsar o planeta ou o contrário?
Estou cada vez mais próximo da ideia de que o organismo inteligente e vivo do planeta vai nos dispensar como parte dele. É como se a Terra nos identificasse como células doentes. O que um organismo saudável faz com células mortas? Ele joga fora. Tudo em nós, até a epiderme e o cabelo, passa por essa mudança constante. Não só as cobras trocam de pele, nós também. Minha esperança é de que essa teoria de Gaia deixe de ser uma teoria e passe a ser uma constante do organismo vivo da Terra, em que ele dispense tudo quanto é célula estragada, inclusive esta, o sapiens. O sapiens deu metástase, espero que o planeta o dispense.
Qual o futuro que estamos embalando para as próximas gerações?
Se olharmos as evidências no mundo todo, vai ser difícil a gente afirmar o contrário, de que não estamos descendo a ladeira. O que acontece nos Estados Unidos e na Europa afeta nossa vida na hora. As mudanças climáticas são a evidência mais eloquente disso. Não tem mais dia certo para chover e para não chover. Os extremos do clima acontecem em qualquer lugar sem aviso. Nós nos acostumamos tanto com a abundância de tudo no planeta que achamos que tem um dispositivo permanente de produzir felicidade enquanto saímos por aí ‘pisando’ e andando.
Qual sua programação para os próximos meses?
Na verdade, eu sou desprogramado.
Publicado em VEJA São Paulo de 23 de maio de 2025, edição nº2945.