A Ricardo Camargo Galeria expõe onze obras da última série produzida por Wesley Duke Lee
As telas da série O Filiarcado ganham nova exposição. É mais uma chance de o artista, afetado pela doença de Alzheimer, ter o reconhecimento da crítica e do mercado
Numa noite de outubro de 1963, a polícia baixou no João Sebastião Bar, reduto da turma da bossa nova na Vila Buarque. A música alta e o barulho de tiros vindo de uma espingarda de brinquedo assustaram a vizinhança. Lá dentro, com a ajuda de lanternas, os clientes se apinhavam para ver desenhos eróticos colados nas paredes. No meio da confusão, ele sorria satisfeito. Depois de sucessivas recusas por parte de galerias tradicionais, Wesley Duke Lee finalmente encontrara uma forma de mostrar seu trabalho. A ação sacudiu uma São Paulo então um tanto conservadora para acolher criações com certa dose de atrevimento.
A trajetória de Wesley deu-se sempre assim, entre altos e baixos, instantes de euforia e longos intervalos de silêncio constrangedores. Hoje, aos 76 anos, com doença de Alzheimer em estágio avançado, em seus rompantes de lucidez ele não esconde um ressentimento com relação ao desprezo da crítica e do mercado. Protagonista de grandes momentos para a arte brasileira, Wesley espera um reconhecimento à altura. “Não é qualquer país que pode se orgulhar de um artista como ele”, diz o crítico Agnaldo Farias. “Wesley ainda não foi suficientemente estudado. Mas será.”
Na quinta (15), a Ricardo Camargo Galeria inaugura uma individual com onze obras de sua última série, intitulada O Filiarcado. Planejada por quase vinte anos, ela mescla antigos jogos infantis e algumas referências. As crianças retratadas lembram anjos renascentistas. Cheia de rugosidades, a superfície de argamassa das telas remete às cavernas da pré-história. Seu formato em losango, preso a uma estrutura de aço e vidro no chão, faz o conjunto todo flutuar, numa associação inevitável com os cavaletes que a arquiteta Lina Bo Bardi projetou para o Masp, no fim da década de 60.
Vista pela primeira vez em 1999, a série já foi apresentada como uma despedida. Nas entrevistas de nove anos atrás, Wesley, que agora pouco fala, mostrava-se bem desgostoso diante do poder dos curadores. Por mais que dependesse da venda para sobreviver, ele buscou compradores dispostos a descobrir em suas criações algo além de cores compatíveis com o tom do sofá da sala. Essa postura o levou a abrir a Rex Gallery, em junho de 1966. Ao lado dos amigos Nelson Leirner e Geraldo de Barros, além de três ex-alunos seus, Carlos Fajardo, José Resende e Frederico Nasser, sua galeria na Rua Iguatemi sacudiu uma cidade quase provinciana no que se referia à produção artística.
Sem espaço nos jornais, a cooperativa, bastante ligada à cultura americana, lançou o próprio periódico, o Rex Time. A primeira manchete explicitava o espírito de ousadia do grupo: “Aviso: É a Guerra”. Durante um ano, os artistas organizaram exposições, questionaram preconceitos e, principalmente, se divertiram. Em maio de 1967, porém, o jornal saiu com um título seco, embora carregado do ar performático de sempre: “Aviso: Rex Kaput”. Sem ter vendido uma única obra, a Rex Gallery fechava as portas. E terminava assim mais um capítulo da carreira nada estável de Wesley.
Merecedor de um prêmio na Bienal de Tóquio, em 1965, e ao mesmo tempo dono de sete negativas por parte dos curadores da Bienal de São Paulo, Wesley acabou se acostumando com essa montanha-russa profissional. Nelson Leirner, o amigo que na década de 60 experimentou com ele o sabor da incompreensão, conta que o artista vivia acompanhado de jovens admiradores. “Lembro dele rodeado por universitários”, afirma. “Wesley gostava de alimentar esse séquito, promover festas. Enfim, incorporava como ninguém uma alma de duque, como seu nome.” No melhor dos sentidos, que fique bem claro. Não à toa, sua proposta estética foi batizada de realismo mágico. “Rex, aliás, vem de rei. Nossa galeria tinha uma coroa como logo, idéia do Wesley”, diz Leirner.
Para entender a admiração que desperta nos colegas, muito além do apreço por suas obras, Claudio Tozzi, um de seus pupilos mais próximos, cita o conversível MP Lafer, uma réplica do MG inglês que Wesley comprou em 1975 e dirigiu até dois anos atrás. Ele amava o modelo, que, com a capota arriada, lhe permitia passear pela cidade com os mais estilosos chapéus. “Comprei o carro e acabei de pintá-lo com o verde que ele mesmo me sugeriu na ocasião”, conta Tozzi. “Hoje em dia, sou eu quem roda por aí no estilo do mestre.” Falta agora só uma acelerada do mercado e da crítica para fazer justiça a um de seus nomes mais esquecidos e brilhantes.
Ricardo Camargo Galeria. R$ 95 000,00 cada obra. Rua Frei Galvão, 121, Jardim Paulistano, 3031-3879. Segunda a sexta, 10h às 19h; sábado, 10h às 14h. Até 14 de junho. A partir de sexta (16). Vernissage na quinta (15), 19h.