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A fila errada

Por Ivan Angelo
Atualizado em 5 dez 2016, 19h09 - Publicado em 25 set 2009, 13h28

Poucas pessoas não experimentaram a sensação incômoda, irritante, que muitas vezes evolui para persecutória, de estar na fila errada, a fila que não anda. Nas estradas, quando há retenções, percebem-se motoristas acometidos pela angústia da fila errada, e trocam para lá, voltam para cá, irritados porque nas outras pistas os carros andam, na deles, não. Com a repetição, muitos desenvolvem a neurose da fila que não anda.

Mal comparando, fila que não anda é pior do que banheiro ocupado. Porque não há nada a fazer. Banheiro ocupado não é uma sensação, é uma coisa concreta, porta, e você pode tomar uma atitude, pode fazer um apelo verbal, reforçar com batidinhas na porta. Mas no trânsito, quando você toma uma atitude, por exemplo, muda de fila, isso não resolve, é a sua nova fila que passa a não andar.

A fila que não anda mexe com coisas dentro da gente, você pode começar a sentir que é algo pessoal, não está acontecendo com as outras pessoas. Você chega a tal ponto de autocomiseração que passa a se considerar uma pessoa micada. Não é esta ou aquela fila que não anda, ou não é ora esta, ora aquela, é a sua fila que não anda, porque você está nela.

O momento de mudar de fila é estimulado por impulsos e travado por premonições. É como a sensação de que aquele grandalhão que está entrando no cinema vai se sentar na sua frente. E senta. Na fila errada, a sua premonição é a de que carregará para a outra fila o enrosco. E carrega.

A frustração é pior do que a que você sente no jogo de buraco, quando a carta esperada não entra, uma, duas, três rodadas. Pior porque no jogo foi você quem se ofereceu ao risco. Na fila que não anda, não, você não estava preparado para outra coisa senão chegar no tempo certo ao seu objetivo.

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Você é jogado em uma falha do sistema. Quando as falhas são pequenas, e palpáveis, como a caneta que não funciona, você sabe o que está acontecendo, rabisca, rabisca e nada, ponto, é real, nada a fazer. Com a coisa que não anda é diferente, você recusa a fatalidade, acha que poderia tentar alguma coisa, mudar de fila, descobrir um atalho. Ela o transforma em um fantasioso, um hipotético, um palpiteiro, um jogador.

Até pouco tempo atrás, a neurose acometia igualmente os enfileirados em bancos, cinemas, teatros, casas de show, estádios de futebol, correio, aeroporto, INSS – com direito a bate-bocas e reclamações. Para amenizar o stress criou-se a fila única. Resolveu? Para dar um pouco mais de liberdade de movimentos aos prisioneiros das filas, foi instituído o sistema de senhas. Adiantou? Melhorou, mas…

Algumas filas resistem à modernidade, como as dos caixas de supermercados, onde sempre acontece algum enrosco, justamente na nossa fila. É a senha do cartão de alguém que não bate, falta de troco, reposição da bobina de papel da registradora, produto sem código de barra… No SUS, surgiu a fila para pegar a senha e deverá ser criada a fila para entrar na fila de tirar a senha. Nos bancos – subdivididas em filas para idosos, clientes vips, não clientes, pagamentos de mais de cinco documentos etc. – ressurgem as que não andam, e os protestos. As dos shows e de alguns cinemas e teatros são furadas pela internet, os lugares somem na telinha enquanto na fila de verdade passeia a angústia: sobrará ingresso para mim? É a novíssima fila errada.

As soluções recentes procuram dar a impressão de que a sensação da fila que não anda é uma neura do passado. Engano. Nossos avós não a tinham, os romanos, os gregos, os egípcios não a tinham, o Homo sapiens não a tinha. Ela é bem moderna, filha da afluência, e não desaparecerá enquanto tantas pessoas quiserem chegar ao mesmo tempo ao mesmo lugar.

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