Singapura: uma cidade que anda na linha
Com obsessão por planejamento, excesso de leis e multas rigorosas, metrópole é hoje uma das mais limpas, organizadas e seguras do mundo
“Todos os dias, cerca de 200.000 pessoas vão morar em cidades. Toda semana, brota uma nova cidade do tamanho de Kyoto ou Barcelona. Em 2050, 70% da população mundial viverá em cidades, em comparação com os 50% de hoje. O desafio das cidades será garantir aos seus 6,4 bilhões de habitantes acesso a energia, água, transporte, emprego e habitação de qualidade.” O texto acima, estampado com destaque em uma das entradas do Ministério do Desenvolvimento de Singapura, reflete a preocupação dos governantes dali com o futuro. A cidade-estado no Sudeste Asiático que ganhou fama pela sua limpeza é obcecada por planejamento urbano. Ali uma maquete gigante ladeada por alguns computadores mostra cada uma de suas atuais construções e as que virão em dois, três, cinco, dez, vinte anos. Isso mesmo, vinte anos. De chorar, se essa realidade for comparada à paulistana, cujas diretrizes do Plano Diretor, em vigor desde 2002, ainda não foram efetivamente implantadas.
O.k. É preciso ponderar que estamos falando de uma ilha com 700 quilômetros quadrados, menos da metade da área do município de São Paulo, com 5 milhões de habitantes (a proporção é de um estrangeiro para cada quatro singapuranos nativos), e cheia de restrições a seus moradores, que pagam caro (não só no sentido literal) caso descumpram suas leis. Não se trata também de uma democracia. Há censura e, sem falar da pena de morte, a punição para determinados delitos (como a pichação) inclui chibatadas. Mas o fato é que a cidade funciona com uma perfeição quase irreal. Vamos a alguns exemplos.
Quem vive em Singapura não tem a menor ideia do que é mofar em um congestionamento. A frota da cidade é de cerca de 900.000 veículos, incluindo aí caminhões e motos. Comprar um carro custa caro, e mantê-lo, mais ainda. A vida útil do automóvel é de dez anos — depois disso, ele é descartado. Os táxis, que por natureza rodam mais, são expulsos ainda mais cedo das ruas: após sete anos. À medida que os carros “velhos” vão saindo de circulação, o governo libera licenças para autorizar novas compras. Cada licença custa cerca de 20.000 reais (esse valor varia de acordo com a demanda). Com isso, a ideia é que a frota não ultrapasse o número atual. O desestímulo não para por aí. Há 25 pedágios eletrônicos espalhados só na região central — na cidade toda são 73. Cada vez que o motorista passa sob um deles e ouve um agudo “pipi” do chip instalado no parabrisa, sabe que lá se foram entre 65 centavos e 2,60 reais, dependendo do lugar e do horário.
Em contrapartida, Singapura é extremamente bem servida de transporte coletivo. São 3.300 ônibus (97% com arcondicionado) e 129,7 quilômetros de metrô. Criado em 1987, ele tem 87 estações espalhadas por quatro linhas. Um trem não demora mais que três minutos para chegar. Para incentivar a reciclagem do bilhete unitário, uma espécie de cartão de crédito, o usuário paga cerca de 3 reais pela passagem e depois tem 1,30 real devolvido caso o retorne à máquina. Acima dessas máquinas, aliás, ficam placas lembrando que quase tudo é proibido ali: fumar, comer, beber, levar animais e portar líquidos inflamáveis, sob pena de multas que variam de 650 a 6.500 reais. Também é proibido mascar chiclete. As gomas de mascar foram banidas do país em 1992, quando jovens começaram a grudálas nas portas dos trens, o que impedia que elas se fechassem corretamente, causando atrasos e interrupções no transporte público. E uma restrição curiosa: por causa do cheiro forte, os usuários também não podem carregar no metrô uma fruta nativa chamada durião, que lembra, só na aparência, a jaca.
Se flagrado jogando sujeira no chão por um dos fiscais que ficam à paisana nas estações, o porcalhão tem duas chances de pagar por isso (na primeira vez, 260 reais, e na segunda, o dobro desse valor). Na terceira, multa de 1.300 reais e constrangimento social. O contraventor é obrigado a colocar um colete com a frase “Ordem de trabalho corretivo” estampada nas costas e, como castigo, tem de varrer o chão. Não raro, quando isso acontece, o cidadão é filmado pelas autoridades e a cena passa em rede nacional. A limpeza em Singapura é tamanha que possibilita ver o reflexo das pessoas no piso dos vagões e das plataformas. Esse ambiente quase hospitalar se repete nos shoppings, nos espaços públicos e no aeroporto. Ele, o Aeroporto Changi.
Bom, mais um nocaute se olharmos para o nosso umbigo. Inaugurado em 1981, o aeroporto recebe anualmente cerca de 40 milhões de passageiros, tendo capacidade para lidar com 70 milhões. Para efeito de comparação, em 2010 26 milhões de viajantes passaram por Cumbica — que comporta 20 milhões. Felizmente, na última semana foi aprovado o plano de construção do seu tão aguardado terceiro terminal. Por seu conforto e serviços, Changi foi eleito em 2010 o melhor aeroporto do mundo pela consultoria britânica Skytrax, responsável pelo ranking oficial da categoria. Enfeitados com palmeiras e jardins incríveis, os três terminais dispõem de dezenas de computadores com acesso gratuito à internet. Para passageiros com filhos pequenos, há um playground e TV com programação infantil. Ninguém precisa disputar poltronas. Elas estão espalhadas aos montes: as normaizinhas, as tipo espreguiçadeira e as com massageador para os pés. Há 290 lojas e 130 restaurantes. E vamos ao que interessa: o tempo médio que se gasta com a imigração. No máximo, quinze minutos.
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Ao sair dali, parte dos 26.000 táxis — aqueles que, tadinhos, têm vida útil de sete anos — estará a postos. Embora tenham cores diferentes (vermelho, amarelo, azul e branco), não há distinção entre eles. Cobram a mesma tarifa e circulam pela cidade toda. Apesar de os veículos serem novos e não haver congestionamento em Singapura, os motoristas não podem pisar fundo. A velocidade máxima permitida é de 50 quilômetros por hora nas ruas e 90 quilômetros nas avenidas e estradas. Radares eletrônicos dão conta de multar os infratores. Um dos objetivos do estabelecimento da velocidade baixa é preservar a vida do pedestre, que também tem suas obrigações a cumprir. Atravessar em lugar errado dá multa que pode chegar a 1.300 reais. Sim, é uma facada no bolso. Mas, de maneira geral, os moradores de Singapura (77% descendentes de chineses, 13% de malaios, 7% de indianos e 3% de outras etnias) já parecem ter incorporado esses hábitos e acreditam que é o preço para desfrutar qualidade de vida no seu dia a dia.
A cidade é segura, apesar de praticamente não haver policiais circulando (o efetivo é de 38.587 homens, o equivalente a pouco menos da metade das 90.000 câmeras instaladas). Dá cadeia andar com qualquer tipo de arma. E, para quem é pego com mais de 15 gramas de droga, pena de morte. No ano passado inteiro, foi registrado apenas um homicídio. Os moradores, que são incentivados a delatar quem anda fora da linha, também fazem as vezes de autoridade. Cerca de 85% deles vivem em condomínios públicos. São edifícios enormes, com apartamentos de, em média, 90 metros quadrados. O governo subsidia 80% do valor do imóvel. Aqui vale um parêntese que tem a ver com o quesito limpeza (como a maioria mora em prédios públicos e lá só são permitidos cães de pequeno porte, quase não se veem animais nas ruas de Singapura).
Dona do quinto PIB per capita do mundo, Singapura tem uma economia que se alimenta das transações financeiras (são 150 bancos), do turismo (as lojas de grife são uma atração à parte) e da indústria de alta tecnologia — é um dos maiores produtores mundiais, por exemplo, de discos rígidos para computador. O governo atua com eficiência em sua política para transformar o país num dos locais mais sedutores do planeta para fazer negócios. Quem deseja colocar dinheiro ali encontra uma das menores cargas tributárias da Ásia (14% sobre o PIB, menos da metade da taxa brasileira) e não depara com nenhum tipo de barreira burocrática. Antiga vila de pescadores, a ilha foi colônia britânica de 1819 a 1959 (daí a direção dos veículos do lado direito e o inglês ser um dos quatro idiomas oficiais — há ainda o mandarim, o malaio e o tâmil). Sob a presença inglesa, Singapura desenvolveu uma vocação comercial, atraindo imigrantes a seu porto livre de impostos. Em 1963, uniu-se à federação da Malásia, da qual se separou dois anos depois para se transformar em estado independente. Àquela época, convivia com corrupção e com uma série de problemas sociais.
Embora hoje esse chamado Tigre Asiático tenha alto nível de vida, seu sistema político é um dos mais fechados da Ásia. Desde 2004 é comandado pelo primeiro-ministro Lee Hsien Loong, o governante mais bem pago do mundo, segundo a revista “The Economist”. Além da forte presença no mercado financeiro internacional e dos excelentes índices educacionais, o país passou por grandes transformações. Uma delas pode ser vista ao longo do Rio Singapura, onde se enfileiram dezenas de bares e restaurantes. Antes uma região degradada, agora é possível passear ali em pequenos barcos por suas águas despoluídas após dez anos de pesados investimentos. Apesar das diferentes características geográficas do Tietê e do Pinheiros, é impossível olhar aquele lugar recuperado, cheio de vida, e não sonhar com destino semelhante para os nossos famigerados rios. Por que não? Essa pergunta parece nortear a moderna e moralista Singapura, a cidade cujo lema é, não por acaso: “Majulah”. Ou seja, avante!
Fontes: Infraero, IBGE, Secretaria das Subprefeituras, Detran, Metrô, Abrasce, SPTrans*Veículos emplacados
**Projeção para 2011