Finanças e comportamento: dois equívocos que comprometem o orçamento familiar
No trabalho cotidiano com meus pacientes invariavelmente levo em conta alguns campos da vida pessoal que sempre são importantes na determinação ou no curso do sofrimento psicológico que eles enfrentam: condição geral de saúde, atividade física, alimentação, vínculos e comportamento financeiro. De todos eles, o comportamento financeiro é o menos intuitivamente associável ao sofrimento psíquico. […]
No trabalho cotidiano com meus pacientes invariavelmente levo em conta alguns campos da vida pessoal que sempre são importantes na determinação ou no curso do sofrimento psicológico que eles enfrentam: condição geral de saúde, atividade física, alimentação, vínculos e comportamento financeiro.
De todos eles, o comportamento financeiro é o menos intuitivamente associável ao sofrimento psíquico. É comum as pessoas atribuírem o sofrimento a um revés financeiro mas não ao seu comportamento financeiro. Dito de outra forma, as pessoas tendem a atribuir o revés financeiro (desemprego, salário insuficiente, um gasto imprevisto, doença, um cliente que não pagou etc) e os problemas emocionais dele decorrentes a alguma força de fora para dentro e sobre o qual não se pode exercer qualquer controle.
Mesmo sem considerar os imprevistos que acabam impondo grandes privações, há muitas famílias que vivem no vermelho cotidianamente, sempre fazendo malabarismos para pagar contas em dia e sempre lidando com juros de cheque especial, cartão de crédito e de financiamentos.
Embora todos nós estejamos sujeitos a imprevistos que podem comprometer nosso equilíbrio financeiro, o que se vê é que a maioria das pessoas e famílias enfrenta dificuldades financeiras que poderiam ser evitadas ou ao menos minimizadas.
Como, então, ter um orçamento equilibrado?
Sob pena de estar simplificando exageradamente um comportamento complexo como o controle financeiro, vejo que há dois equívocos básicos no orçamento da maioria das famílias (e indivíduos) e que acabam produzindo um orçamento desequilibrado com consequentes pendências financeiras e sofrimento emocional: não priorizar aquilo que realmente importa e tratar eventos previsíveis como se fossem imprevisíveis.
Vejamos o processo comportamental por trás desses dois equívocos.
Não priorizar o que realmente importa
Na clínica, quando pergunto às famílias (ou indivíduos) quais são as prioridades do orçamento familiar em ordem decrescente de importância (do mais importante ao menos importante), quase sempre o que vejo é uma lista que começa com prestação da casa ou do carro, mensalidades diversas (plano de saúde, escola), seguros, supermercado, contas de moradia (condomínio, água, luz telefone) etc. Lá pela vigésima posição da lista começam a aparecer itens interessantes como viagem, teatro, pizza de sábado, cinema etc.
Questiono, então, a razão de itens tão importantes voltados para o prazer dos membros da família só aparecerem no fim da lista. A explicação também é quase sempre a mesma. Dizem que só é possível fazer essas coisas quando sobra dinheiro porque não se deve deixar de pagar a casa, o carro ou as contas de moradia.
Embora essa explicação pareça razoável, ela esconde um equívoco que acaba, por fim, levando ao desequilíbrio orçamentário. Imagine que a gente monte um grupo para visitar um quartel do Corpo de Bombeiros em algum pequeno vilarejo no interior. Durante a visita a gente nota que os veículos são todos novos e recebem cuidados diários de manutenção. O orçamento é apertado mas, como o comandante não quer ser motivo de piada em outros quarteis, toda a equipe se esforça para fazer com que o orçamento seja suficiente para manter os veículos todos em perfeitas condições. Acontece que com tanta dedicação aos veículos e com um orçamento tão apertado a equipe acaba não se dedicando ao treinamento das habilidades de resgate e de combate a incêndio, até porque eles são raríssimos no pequeno vilarejo. Saímos todos da visita com uma sensação de estranhamento.
Creio que esteja claro o ponto do equívoco. O que realmente importa na atividade dos bombeiros é sua capacidade de combater incêndios e executar resgates. Veículos modernos e em bom estado obviamente são importantes mas não são a essência da atividade de um bombeiro. De nada adianta ter veículos novos se não se sabe como usá-los e se não se sabe agir em situações nas quais eles não sejam úteis. A essência da atividade dos bombeiros é saber salvar vidas. Da mesma forma, a essência de nossas vidas não deve ser o automóvel, a casa ou o nome da escola dos filhos. A essência da vida é, genericamente, ser feliz. Cada um deve saber dizer aquilo que importa para si e a família deve representar uma junção dos projetos de todos os seus membros.
Nessa altura alguém já deve estar me perguntando em tom desafiador: “Mas e aí, espertinho, então você está dizendo pra eu viajar com minha família no começo do mês, realizar as vontades de todos e, se sobrar algum dinheiro, aí eu pago as contas da casa no fim do mês?”.
Aqui é que está o pulo do gato. A resposta a esta pergunta é não. A questão é que temos de ter um orçamento que equilibre esses dois grupos de despesas: despesas com felicidade e despesas com a manutenção da vida. Isso pede planejamento. Nada complicado que exija fórmulas. O planejamento consiste basicamente em determinar previamente o que realmente importa para a família e qual parcela dos ganhos a família quer destinar a esse conjunto. O que sobrar deve pagar todas as outras despesas habituais. Isso quer dizer que a família deve saber escolher o custo de cada elemento cotidiano de modo a não comprometer as coisas mais importantes. Pode ser que isso signifique um carro mais simples, uma casa mais modesta, móveis mais populares e hábitos mais econômicos. Quando se sabe o que realmente importa para si e para a família, essas escolhas ficam muito fáceis. Do contrário, se não nos debruçamos sobre essa questão, acabamos cedendo ao apelo da propaganda e dos valores consumistas, justamente porque nosso comportamento tende a ficar sob controle do julgamento social e das conquistas mais imediatas. Passamos a achar que um carro de luxo (e todos os produtos anunciados como sinônimos de classe) vai nos tornar felizes. Com o passar do tempo, os problemas orçamentários começam a surgir, justamente porque se passa a trabalhar para pagar contas simplesmente, o que não é nada prazeroso. Depois de mais um tempo é a vez de surgirem os problemas físicos, de vínculo e emocionais, que são decorrentes da frustração por não conseguir alcançar um bem-estar material.
Tratar eventos previsíveis como se fossem imprevisíveis
Voltando ao exemplo dos bombeiros, lembremos que se tratava do quartel de um pequeno vilarejo do interior, onde as ocorrências são raríssimas (o último chamado aconteceu seis anos atrás). Digamos que haja um chamado de incêndio. A equipe (sem treinamento, lembremos também) se paramenta demoradamente para a ocorrência e sai toda atabalhoada em seus veículos novos e brilhantes. Quando chega ao local, já com algum atraso, o fogo já destruiu quase todo o estabelecimento. Como a equipe tem dificuldade também em montar os equipamentos, quando finalmente começa a lançar água sobre o estabelecimento, já não sobrava quase nada para salvar. Mesmo com resultados ruins, a operação foi onerosa para o Corpo de Bombeiros do vilarejo, que agora está no vermelho. Perguntado em entrevista sobre as condições financeiras do quartel, o comandante da equipe diz que estava tudo certo mas que a situação saiu do controle por conta do incêndio, que foi um grande imprevisto.
Obviamente o orçamento do Corpo de Bombeiros não pode considerar um incêndio como um imprevisto. Avaliando este exemplo fictício, concordamos ser um absurdo! Mas é justamente isso que acontece com os orçamentos familiares Brasil adentro. É comum alguém decidir comprar um carro financiado depois de fazer algumas contas e deixar tudo ajustado para conseguir quitar a dívida ao longo de quatro ou cinco anos (já vimos em outro texto porque isso é arriscado e como os comerciantes usam uma característica de nosso sistema nervoso – maior sensibilidade às consequências imediatas de nosso comportamento – para nos convencerem a fazer financiamentos). No meio do prazo do financiamento, também é comum a pessoa ser surpreendida por uma colisão do veículo ou uma quebra, obrigando-a a pagar a franquia do seguro (isso quando há um seguro), ou mesmo por algum outro revés (doença, desemprego…) que a impeça de pagar as parcelas durante algum tempo. Como se sabe, esse atraso acaba virando uma bola de neve.
Para evitar esse tipo de “surpresa”, é importante que todos saibamos que imprevistos vão acontecer em algum momento mas eles não são imprevisíveis. Costumo dizer que o motor quebrar às 8h35 de uma terça de sol na porta de casa é totalmente imprevisível mas saber que o carro vai apresentar algum problema em algum momento é totalmente previsível.
Encerrando a conversa e começando uma nova fase
A fim de construir um repertório comportamental satisfatório na gestão do orçamento familiar é importante ler sobre o assunto e procurar um consultor financeiro se for possível. Ainda assim, sem querer simplificar exageradamente o tema, destaco duas dicas para ajudar a evitar os dois equívocos mencionados aqui.
1) Estabeleça suas prioridades (aquilo que favoreça a felicidade) e elabore o orçamento a partir dessas prioridades.
2) Poupe dinheiro. Poupar (e investir) serve para evitar que você seja surpreendido por imprevistos previsíveis (a falta de estilo é para reforçar a ideia) e também para que você possa realizar seus projetos (cursos, viagens, carro novo) pagando menos por eles e passando por menos estresse.
Ainda que essas atitudes tornem a vida da família um pouco mais modesta, a tranquilidade e o prazer cotidianos decorrentes desta nova postura farão a escolha valer a pena. E sempre é oportuno lembrar que a base para que esse passo seja bem-sucedido é o diálogo entre os membros da família.
Sugestão de leitura: Como organizar sua vida financeira: inteligência financeira pessoal na prática (Gustavo Cerbasi). Rio de Janeiro: Elsevier, 2009.