#SPSonha: corajoso seria demolir o Minhocão
O arquiteto e urbanista Lourenço Gimenes debate a construção do Elevado Presidente João Goulart: "Ele tem a propriedade de despertar paixões"
Desde a década de 30 o estímulo ao transporte individual motorizado (vulgo “carro”) vem forjando a paisagem de São Paulo com vias largas e calçadas estreitas. Seu protagonismo culminou, por volta do ano 2000, num cenário preocupante: mais da metade dos deslocamentos motorizados na região metropolitana, segundo a pesquisa Origem-Destino, era feita por automóveis. Numa metrópole deste tamanho, não espanta que o desprezo ao transporte coletivo tenha resultado em assombrosos recordes de congestionamento.
Resumir um século em um parágrafo é perigoso, mas a ideia é criar um pano de fundo para falarmos de uma via elevada que virou símbolo dessa visão rodoviarista. O famoso Minhocão, inicialmente nomeado em homenagem ao general que comandou o país a partir de 1967, foi há três anos rebatizado como Elevado Presidente João Goulart, chefe do governo deposto pelo regime militar. Ironias à parte, a discussão sobre a derrubada ou manutenção do Minhocão parece estar encerrada, e o futuro Parque Minhocão é lei. Ao que parece, a prefeitura está segura de que a ideia de um parque suspenso é a resposta correta para o problema.
O Minhocão tem a propriedade de despertar paixões. Para alguns, é um problema de tráfego, e alegam que sua desativação vai aumentar ainda mais o trânsito. Para outros, o problema é a poluição visual, sonora e atmosférica. Já há os que defendem a privacidade e a qualidade de vida dos moradores de prédios que ficam tão perto da via elevada que seria possível servir uma xícara de café aos motoristas. Para outros, ainda, trata-se de uma questão mais ampla, que remete à própria ideia de cidade. Eu me incluo no último grupo.
Ao que parece, estamos num ponto de inflexão. A forma como usamos a cidade está mudando rapidamente com os aplicativos de transporte e com a oferta de carros, bicicletas e patinetes compartilhados. Mais que isso: parece estar havendo uma mudança cultural, na qual as pessoas reconhecem o valor de morar perto do trabalho e declaram, cada vez mais, simpatia pela ideia de abrir mão do carro. Isso é, ao mesmo tempo, um reflexo da tecnologia, da percepção das deseconomias geradas pelos congestionamentos, de um Plano Diretor que estimula densidade perto do transporte coletivo e, claro, da nova geração de cidadãos sem apego emocional aos automóveis.
Posso parecer otimista, mas batemos no fundo do poço e começamos agora a encontrar meios para subir. Por isso, a primeira pergunta que se deve fazer é: qual é a cidade que queremos para o futuro? O que fazer com o Minhocão me parece subsidiário dessa pergunta, e não uma discussão isolada.
Os defensores do futuro parque não se furtam a compará-lo a exemplos de sucesso como o High Line, de Nova York, aberto em 2009, ou sua antecessora parisiense Coulée Verte, vinte anos mais velha. E é aí que está o equívoco. Em primeiro lugar, em ambos os casos, as vias férreas estavam abandonadas e seu aproveitamento não requeria, portanto, nenhuma ação complementar para reordenar o fluxo de pessoas e veículos, como obrigatoriamente acontecerá no nosso caso. Nesse sentido, a complexidade por aqui será bem maior e seu impacto, sistêmico. O que se destaca, porém, é que os dois exemplos de sucesso se inserem de forma completamente diferente na cidade.
Em Paris, a linha férrea corre em paralelo à Avenida Daumesnil, com um recuo de mais de 10 metros que se transforma não apenas numa bela calçada, mas também num espaço urbano generoso, arborizado e claro. A antiga estrutura acomoda lojas, restaurantes e ateliês que se abrem para a calçada, o que estimula o fluxo de pedestres. Sob o parque elevado, é possível caminhar somente nos trechos em que ele atravessa as ruas, e isso faz dele mais um longo edifício com teto verde do que um trambolho sobre o espaço público. Não menos importante, a calçada ladeia a construção a sudoeste, motivo pelo qual ela está sempre iluminada e ensolarada. O impacto da Coulée — utilizada sobretudo pelos moradores da vizinhança — na paisagem urbana não é apenas útil, mas também gentil e tranquilo.
Já o High Line serpenteia entre prédios a oeste de Manhattan e ocupa a área interna das quadras, exceto quando cruza as ruas. Sua interferência no nível térreo, assim, também se resume a poucos pontos de sombra. O belo projeto implantado nos anos 2000 logo atraiu atenção: na oitava cidade mais visitada no mundo, o High Line passou a ser uma das principais atrações, e muitos turistas lotam o parque diariamente.
As comparações do Minhocão com o High Line e a Coulée são inadequadas. Ele se projeta sobre o espaço público de forma contínua, tornando o térreo um território escuro e hostil, feio e poluído. Em situações semelhantes às verificadas na Perimetral no Rio de Janeiro, no Big Dig de Boston ou no Rio Cheonggyecheon em Seoul, a remoção das vias elevadas representou um verdadeiro renascimento do tecido urbano local. Não seria o caso de enfrentarmos a demolição do Minhocão e o redesenho desse território urbano, incluindo espaços verdes e de lazer integrados à paisagem cotidiana?
É certo que temos carência de espaços públicos qualificados, e é por isso que a mera disponibilidade de usar o Minhocão nos fins de semana atrai tanta gente. É também interessante partir da preexistência para criar algo novo, como os exemplos citados, mas fazer uma meia solução a partir de um grande erro é admitir fazer menos do que poderíamos: a manter-se a estrutura, o térreo continuará lúgubre; no 1º e no 2º andares, a vista continuará sendo a estrutura em concreto armado, e um parque sobre ela pode beneficiar visualmente os andares superiores, mas não tanto a cidade.
De qualquer maneira, o que quer que se execute, já será um ganho diante da realidade atual. Mas, mantida a atual proposta, perderemos a oportunidade de fazer uma intervenção efetivamente corajosa.
> Lourenço Gimenes é arquiteto e urbanista, formado pela FAU-USP, e sócio do escritório FGMF
Publicado em VEJA SÃO PAULO de 12 de junho de 2019, edição nº 2638.