Da burocracia pública a chefs e arquitetos que ficaram “de fora”, os obstáculos do Ocupa Rua
No Centro, a presença de frequentadores nos espaços dos restaurantes nas calçadas trocou carros ou acúmulo de lixo por mesas, verde e mais segurança
Nos próximos dias, a prefeitura deve aprovar mais vinte regiões da cidade onde os restaurantes poderão ocupar vagas da Zona Azul e parte das calçadas para servir ao ar livre. Em trechos das ruas Treze de Maio, dos Pinheiros, Bela Cintra, Vupabussu, Barão de Tatuí, Jerônimo da Veiga, Largo da Freguesia do Ó, entre outros.
A ideia é ampliar o que se vê em cinco ruas em pleno Centrão, no programa piloto Ocupa Rua. No lugar de carros ou acúmulo de lixo, surgiram mesas, cadeiras e verde, fornecidos sem custo ao poder público. Frequentadores de bares e restaurantes por ali, é preciso sublinhar, são gente permanecendo na rua e não apenas de passagem — essa raridade paulistana, que garante vigilância e segurança espontâneas — em uma área esvaziada pela pandemia.
+#SPSonha: salvar restaurantes com menos carros
Com adesões variadas. Do multipremiado A Casa do Porco ao boteco do Alemão, do Bar do Buraco (de marmitas a 10 reais) ao símbolo de gentrificação local, o Z Deli (no térreo do Instituto de Arquitetos do Brasil, onde antes ficava uma simpática livraria de arquitetura). Mesmo com os hambúrgueres mais caros das redondezas, vive cheio.
Por que a iniciativa não se espalhou para outros bairros da cidade ainda, dez meses após o início da quarentena? Mesmo com o fechamento de 20% a 30% dos restaurantes da cidade em menos de um ano? Acompanhar os inúmeros obstáculos do projeto é um intensivo de política urbana, daquelas que bienais de arquitetura costumam ignorar. Da burocracia pública do “deixa-disso, vai dar trabalho”, a arquitetos e chefs de cozinha que ficaram “de fora”, vozes se levantaram contra uma causa que beneficia a economia, a cidade e a vida na rua.
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Em grandes metrópoles pelo mundo, foi bem diferente. Paris, Nova York, Buenos Aires e Lisboa foram muito rápidas: em poucas semanas de pandemia, mudanças urbanas foram aprovadas com a urgência necessária. Centenas de quilômetros de ciclovias surgiram com sinalização simples em Londres, Bogotá e Paris; parques foram reabertos com circunferências no gramado para separar os pequenos grupos de piquenique de Nova York a Medellín. Mas, principalmente, para salvar a fundamental indústria gastronômica, sem pôr em risco sua clientela, restaurantes e bares tiveram permissão para ocupar vagas de estacionamento na rua com mesinhas e cadeiras.
Em Nova York, desde julho, mais de 10 mil restaurantes, lanchonetes e cafés adotaram o serviço ao ar livre, seguindo apenas um manual com medidas e desenhos permitidos, e que será mantido mesmo após a pandemia; em Paris, em 2 de junho, a liberação de calçadas e vagas de carros foi além disso: 23 ruas do Marais, Montmartre e Montparnasse foram fechadas ao trânsito nos finais de semana para os restaurantes ocuparem todas as vias. Basta um registro online e seguir uma cartilha com 10 regras de “bom comportamento”. Nem a capital francesa, nem a maior metrópole americana podem ser consideradas cidades mais avacalhadas ou menos interessadas no espaço público que São Paulo.
Em São Paulo, até para copiar uma ideia simples, fomos lentos. O projeto piloto no Centro saiu seis meses depois do início das restrições. E olha que tinha madrinhas de luxo. A jornalista e crítica gastronômica Alexandra Forbes, que, apesar de morar na França, quis dar sua contribuição à cena paulistana e teve a iniciativa. A apoiadora de primeira hora, a chef e empresária Janaína Rueda (a “Dona Onça”, do restaurante homônimo, e mulher de Jefferson Rueda, do A Casa do Porco). O arquiteto Gustavo Cedroni e o paisagista Marcelo Faisal, ambos premiados.
Rapidamente, Janaína e Alexandra conseguiram patrocinadores para bancar as peças. Conhecendo-se o índice de civilidade paulistana, o jeito foi adotar o concreto para criar uma barreira entre motoristas e quem estivesse sentado. O prefeito Bruno Covas, mesmo quando teve seu diagnóstico de Covid anunciado, participou das reuniões e demandou que a máquina pública começasse a se mexer.
Apesar do então secretário de Desenvolvimento Urbano, Fernando Chucre, ter abraçado a proposta desde o início, houve muita oposição. No início, a Vigilância Sanitária foi contra. Discordando das regras mundo afora, defendeu o serviço interno, contra as mesas externas (em Nova York, mesmo no inverno, o interior dos estabelecimentos é que foi isolado, exclusivo ao ar livre).
As subprefeituras também disseram que seria impossível fiscalizar. Só a CET, tradicionalmente mais preocupada com o automóvel do que com o pedestre, apoiou a empreitada. “A arquiteta Bete França, que era diretora lá, foi parceira total”, diz Chucre. “O prefeito foi totalmente a favor, mesmo com a gritaria.”
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Por causa da Lei Cidade Limpa e do decreto que não incluiu essa exceção, os patrocinadores que supunham que fossem colocar seus logos nos ombrelones tiveram de aceitar patrocinar a empreitada em quase anonimato.
A conversa entre mais de trinta estabelecimentos envolvidos não foi fácil. Ainda não temos tradição dos chamados business improvement districts, as pequenas associações comerciais que respondem pela zeladoria de regiões muito específicas em parcerias com prefeituras, algo bem comum de Chicago a Hamburgo. Muitos empresários vizinhos nas ruas Major Sertório e General Jardim, mesmo pertencendo ao mesmo setor, nunca tinham conversado (e ainda se viam como rivais).
Sendo uma área com poucos edifícios residenciais e trânsito bem restrito, não surgiram os movimentos que tratam a cidade como um condomínio fechado no interior. De setembro para cá, virou um pequeno pedaço do Centro de São Paulo que não se parece com o cenário do Ensaio sobre a Cegueira.
Outra oposição, mais lamentável, por não incluir receios legítimos quanto à fiscalização ou segurança, veio de colegas arquitetos — nas redes sociais, em mensagens privadas, e no jornalismo mais ingênuo que abriga qualquer lobby sem filtro. Algumas reportagens só ouviram restaurantes e urbanistas contrários à iniciativa; o chef Erick Jacquin protestou, falando em “concurso de beleza” (?), ao mesmo tempo que queria fazer o mesmo nos Jardins (um bairro bem mais minado para tirar vagas de estacionamento e colocar mesinhas na rua…).
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Urbanistas com pouquíssima experiência prática ou teóricos-de-teorias-pouco-lidas postaram nas redes sociais imagens de pequenas e leves estruturas de madeira pela Europa para criticar a versão paulistana. O racha entre os arquitetos que projetam, de fato, e muitos que vivem em um sabático permanente, bem financiado por sinecuras públicas ou heranças, ganhou mais decibéis.
Não é a primeira vez que as elites paulistanas insistem em perder o trem-bala da história. A oposição às ciclovias e ao programa Paulista Aberta veio de associações de bairro que ainda querem tratar seus domínios como condomínios fechados, carrodependentes; já contra os parklets, a gritaria veio da turma que vê “privatização” em tudo, palavrinha que dá tilt em muita gente que vive da mesada dos seus pais capitalistas. Outros, querendo ser mais lentos que a burocracia municipal, queriam audiências que retardariam três meses o piloto. A Casa do Porco já foi até criticada com “requintes de crueldade” por ter uma cozinha envidraçada, diante da pobreza da região (se estivesse na Vila Nova Conceição, seria poupada de críticas pueris).
“A cada semana um estabelecimento do Centro fechava as portas, tínhamos urgência”, argumenta o arquiteto Gustavo Cedroni, do escritório Metro, que não cobrou pelo projeto. “Fizemos oito reuniões públicas on-line e a prefeitura criou um site com ferramentas de pesquisas de opinião.”
Uma das críticas dos colegas que mais o irritaram é que o Ocupa Rua “privatiza o espaço público” e que “taxas e impostos deveriam ser cobrados dos restaurantes”.
“Acredito que ocupar sistematicamente o espaço do carro para uso das pessoas é o grande projeto urbano para São Paulo”, diz. “Sobre as taxas, os estabelecimentos estavam (e continuam) vivendo a maior crise financeira do setor, e, cá entre nós, entender a vaga do carro como espaço público é uma visão bem distorcida da realidade.”
Sobre a cara do projeto, Cedroni fala que a rapidez e o baixo custo fazem parte da urgência de se salvar o setor que estava morrendo no Centro.
“Se esta cidade fosse mais amigável com os pedestres, poderíamos somente ter pintado a área das mesas ou feito um bloqueio do espaço com cones. Mas a disputa por espaço entre carros, ciclistas e pedestres segue como se fosse uma batalha, extremamente desleal — não para o carro. Por essa razão, decidimos criar barreiras fisicamente robustas, compatíveis com a força do carro para trazer maior segurança às pessoas. Tais barreiras poderiam ter outra função: trazer mais verde para a paisagem urbana com o plantio de espécies nativas”, explica.
Houve arquiteto querendo queimar a prancheta em público por causa da cor rosa. “Uma cor mais viva e contrastante com o cinza do asfalto chamaria mais atenção do motorista, e, como isso é feito com um pouco de pigmento na própria massa do concreto, não custava nada”, argumenta. “A depender do tipo de audiência pública que alguns gostariam, estaríamos até hoje discutindo a cor dos vasos para uma área completamente esvaziada de serviços no térreo.” Descolados da realidade, alguns projetistas-sem-projeto, contra qualquer iniciativa “privada”, acabam escanteados dos debates adultos da cidade. Viram café com leite.
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Publicado em VEJA São Paulo de 20 de janeiro de 2021, edição nº 2721