Zé Henrique de Paula fala sobre “Ou Você Poderia me Beijar”: “gays enfrentam um retrocesso assustador em alguns países”
Em tempos de Marco Feliciano, Jair Bolsonaro, Félix e Niko, o diretor paulista Zé Henrique de Paula traz à tona uma nova discussão sobre a homossexualidade. Com estreia prometida para 7 de fevereiro, o espetáculo Ou Você Poderia me Beijar aborda o relacionamento de um casal gay em três fases, a juventude, a maturidade e […]
Em tempos de Marco Feliciano, Jair Bolsonaro, Félix e Niko, o diretor paulista Zé Henrique de Paula traz à tona uma nova discussão sobre a homossexualidade. Com estreia prometida para 7 de fevereiro, o espetáculo Ou Você Poderia me Beijar aborda o relacionamento de um casal gay em três fases, a juventude, a maturidade e a velhice. Escrito por Neil Bartlett, Adrian Kohler e Basil Jones, o drama inglês foi descoberto por Zé Henrique em 2010 e o fato de enfocar um casal de homens na terceira idade foi o que mais lhe chamou a atenção. Claudio Curi, Roney Facchini, Marco Antônio Pâmio, Rodrigo Caetano, Thiago Carreira e Felipe Ramos interpretam os personagens nas diferentes etapas da vida. Clara Carvalho, por sua vez, representa todos os papéis femininos da montagem. A temporada será no Teatro do Núcleo Experimental nas sextas e sábados, às 21h, e aos domingos, às 19h, até 27 de abril, com ingressos a R$ 40,00. Agora, com vocês, as palavras de Zé Henrique de Paula.
Por que falar agora das relações homossexuais perpetuadas pelo amor? Já existem espetáculos demais sobre a descoberta do desejo ou o preconceito em torno da aceitação?
Eu descobri esse texto em Londres, no começo de 2010. Nessa época, a peça tinha acabado de sair de cartaz, portanto não vi a montagem do National Theatre feita com bonecos. A primeira coisa que me chamou a atenção foi o fato de apresentar um casal homossexual na terceira idade. Geralmente, a dramaturgia aborda personagens jovens e os dilemas da aceitação e a influência do preconceito na relação. Angels in America, Bent e Love! Valour! Compassion! são exemplos disso. O diferencial é testemunharmos como um casal que viveu uma relação de 60 anos lida com o momento em que um dos parceiros irá morrer, como se despedir e dizer adeus, depois de uma vida inteira a dois. É uma peça sobre amor, morte e a passagem do tempo. Poderia acontecer com qualquer casal, gay ou não. E, além disso, usa de maneira muito inventiva a aparição da mesma dupla em outras diferentes idades: na juventude, quando se conheceram, e na maturidade, aos 40 anos.
A temática homossexual é mais aceita quando vem associada à comédia?
A comédia, por natureza, facilita a aproximação com temas que podem ainda ser tabus, embora o riso só aconteça por distanciamento, nunca por identificação. Os textos ingleses contemporâneos costumam não se fixar à ideia tradicional de gêneros. E isso acontece com Ou Você Poderia me Beijar. Já nos ensaios, claramente percebemos a mistura de ingredientes cômicos e dramáticos, às vezes perigosamente próximos dentro da mesma cena. Eu gosto muito, porque me aproxima da vida real. Deixando de lado a discussão de gênero, eu acredito que o público poderá se identificar com os personagens mais pela delicadeza e humanidade com que foram tratados pelos dramaturgos. Neil Bartlett é um autor inglês que explora a homossexualidade no teatro desde os anos 80 e os coautores Adrian Kohler e Basil Jones (da Handspring Puppet Company) se inspiraram em sua história pessoal para escrever a peça. Sendo quase autobiográfica, fica mais fácil acreditar que tudo aquilo é real.
Você passou parte do ano passado em Londres fazendo um mestrado. Até que ponto a distância geográfica influenciou seu teatro e pode ser aplicada na leitura desse texto?
Eu passei o segundo semestre em Londres e concluí metade do mestrado. Volto em fevereiro para continuar o curso. Vivendo temporariamente na Europa e convivendo com diretores de outros países, a troca sobre teatro acaba sendo extremamente enriquecedora. Você imediatamente reconhece o que é semelhante e o que é diferente na ideologia, abordagens e interesses. Nunca passei tanto tempo discutindo teatro e tão intensivamente. Por outro lado, fui me preparando para dirigir a peça, observando principalmente como os homossexuais e os idosos estão inseridos dentro daquela sociedade, que é mais tolerante e inclusiva que a nossa. Os gays enfrentam um retrocesso assustador em alguns países. Existem leis anti-gays na Rússia, a criminalização do comportamento homossexual em países da África e as tentativas de caminhar nessa direção também no Brasil, com Marco Feliciano, Jair Bolsonaro e Silas Malafaia liderando a empreitada. Como diz o ator Stephen Fry em seu documentário Out There: “a história já provou que, infelizmente, o progresso pode ser revertido”.
Qual é o maior desafio de dirigir três atores diferentes que fazem o mesmo papel e fazê-los carregar características que os identifiquem?
Temos trabalhado, eu e a preparadora de elenco Inês Aranha, a criação de uma identidade comum para os dois personagens do casal. A partir dessa identidade comum, cada ator explora características próprias de sua idade e, especialmente, de sua visão de mundo, de acordo com uma linha do tempo em que está inserido. Para os jovens, há o frescor e a excitação da paixão quase à primeira vista, misturados ao medo e à insegurança. Para os velhos, há a ameaça da morte e o doloroso momento de coletar todas as lembranças para amarrá-las com um adeus definitivo. E na idade madura, a possibilidade de criar uma ponte entre as extremidades e, eventualmente, ter inclusive a oportunidade de mudar os rumos do futuro. Os atores estão em preparação desde outubro do ano passado, trabalhando texto, corpo e canto. Essas três abordagens ofereceram diferentes caminhos para a compreensão das diferentes fases do casal e, ao mesmo tempo, sua essencial unidade ao longo da peça.