Clarice Niskier celebra uma década em cartaz e relembra as melhores histórias de “A Alma Imoral”
“Clarice, você toparia contar algumas histórias marcantes dessa década de ‘A Alma Imoral’”, pergunto eu, por e-mail, para Clarice Niskier. A atriz imediatamente retorna e topa participar dessa entrevista informal, digamos assim. “Muito eu tenho para falar sobre o espetáculo. Dá um livro, em tomos”, afirma. Se o livro sai ou não, a intérprete carioca prefere […]
“Clarice, você toparia contar algumas histórias marcantes dessa década de ‘A Alma Imoral’”, pergunto eu, por e-mail, para Clarice Niskier. A atriz imediatamente retorna e topa participar dessa entrevista informal, digamos assim. “Muito eu tenho para falar sobre o espetáculo. Dá um livro, em tomos”, afirma. Se o livro sai ou não, a intérprete carioca prefere fazer certo mistério. Por aqui, ela nos abriu cinco passagens de um dos mais surpreendentes sucessos recentes do teatro brasileiro.
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Para quem não sabe, vamos retomar como tudo começou. Clarice leu o livro homônimo do rabino Nilton Bonder, pirou e resolveu adaptá-lo para o teatro. Quase ninguém levava a menor fé e alguns falaram que a peça não seguraria um mês em cartaz. O diretor Amir Haddad assumiu a supervisão, e Clarice estreou em 21 de julho de 2006 em uma sala de cinquenta e poucos lugares no Rio de Janeiro. Teve gente que não entendeu o feito até hoje, mas a verdade foi que “A Alma Imoral” ganhou o público com um quase nada que diz muito.
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São mais de 400 000 mil pessoas rendidas ao discurso de uma mulher que passa mais da metade da peça nua e falando, falando. O monólogo segue em cartaz no Teatro Eva Herz, em São Paulo, com sessões nas sextas e sábados, às 21h, e domingo, às 19h.
Neste domingo (17), Clarice convida o público para uma comemoração. Uma conversa com a atriz, Nilton Bonder e Amir Haddad vai ocupar o palco do Eva Herz, às 17h. A entrada é franca, e os ingressos serão distribuídos uma hora antes. Então, vamos finalmente conhecer algumas dessas histórias.
O pano preto
“Primeiro, a ideia da nudez. Nudez que pudesse simbolizar a alma. Eu sabia que não faria a peça nua o tempo todo, seria impossível, deixaria de ser um desnudamento. Mas como resolveria a questão? Ainda não sabia. Durante uma aula-ensaio com Mary Kunha, preparadora corporal, ela propôs que eu dançasse. Estávamos no estúdio dela e fiquei constrangida de dançar nua. Ela então pegou um pano indiano e me emprestou. A experiência foi boa demais, quis repeti-la no teatro. Uma semana depois, o pano indiano tinha se transformado em um pano de malha Bali preto com 3 metros de comprimento por 2 metros de largura. Quando a figurinista Kika Lopes chegou ao processo, ela percebeu, após experimentar milhões de opções de panos de seda, de renda, de veludo, que aquele pano preto de malha Bali, simples e belo, nascido do indiano, era o figurino ideal. Em dez anos, já trocamos o pano quatro vezes.”
A primeira turnê
“A peça ganhou vários prêmios, entre eles, o Prêmio de Circulação Nacional da Petrobras – saudades da Petrobras – em 2008. A estreia desta circulação foi em Divinópolis, em Minas Gerais. Eu estava emocionadíssima. Preparei um discurso. No dia da estreia, subi no palco e disse que estava felicíssima de estar ali, estreando minha primeira turnê nacional, que a peça vinha do Rio com um histórico maravilhoso, muitas críticas positivas, indicações para prêmios, que o carioca havia lotado um teatro de 450 lugares por vários meses, eu não parava de falar para a plateia. Uma plateia vazia… Em um teatro de 300 lugares, havia apenas umas 25 pessoas. A equipe disse que foi a coisa mais engraçada do mundo. Deve ter sido mesmo. O fato é que, no dia seguinte, o público saltou para 150 pessoas e, no terceiro dia, lotamos a sala com direito a fila de espera na porta. O entusiasmo é tudo.”
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O frio
“Não há calefação nos teatros brasileiros, com raríssimas exceções. Acho que o Theatro São Pedro, em Porto Alegre, é um dos únicos que tem. Não é fácil fazer a peça no frio e há inúmeras histórias sobre eu e o frio. A peça recebe, de vez em quando, uns gritos de “bravo” da plateia. Um dia, este ano, em São Paulo, estava tão frio, tão frio, mas tão frio dentro do teatro que quando a peça terminou, o público gritou: “Brava! Brava!”.
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Onde fica o banheiro?
“São Paulo, 2016. Estou em cena. Percebo um senhor caminhando em direção ao palco. Eu continuo a peça. Ele sobe a escadinha lateral, que dá no palco. Continuo a peça. Ele chega ao palco. Penso: ‘será que ele veio acertar minha cabeça?’. Como era um senhor de idade, meu medo é relativo. No palco, o homem começa a procurar a saída entre as ‘pernas’, os panos laterais do cenário. ‘Posso ajudá-lo?’, pergunto. Ele, sem perceber que está no palco com a atriz, responde: ‘Estou procurando o banheiro’. O público ri, respeitoso. Pego seu braço, ajudo-o a descer a escadinha e indico a saída para o banheiro. Ele agradece, a plateia aplaude. Uma voz feminina, irritada, fala com ele. Não é possível identificar o que ela diz. A peça segue, após essa participação especial surpreendente.”
Agora sim!
“São três da manhã, um frio de 9 graus e estamos no Pátio do Colégio, em São Paulo. Um público de mais de 1 000 pessoas aguarda a apresentação na Virada Cultural. Temos quarenta minutos para realizar a montagem no palco gigantesco. Montar luz, cenário, testar o som e instalar os aquecedores ao lado da minha cadeira, para que eu possa me sentar nua. Como nos shows, o palco é alto e há uma grade extensa, de 1,5 metro de altura com 15 metros de largura, entre o palco e o público. Alguns moradores de rua estão debruçados nesta grade. Na peça, há um momento em que me viro de perfil para o público e abro completamente o pano para transformá-lo numa burca. A luz vem do chão. É estritamente necessário que essa luz seja suave, senão ilumina todo o meu corpo de baixo para cima. Um exposição desnecessária. Muita pressa, pressão, a peça começa. Uma das experiências mais fantásticas da minha vida. Chega a cena da burca. O público em uma atenção absoluta. O sistema de som é fantástico. Minha voz tem um raio de alcance inimaginável. Música. Fico de perfil. Abro completamente o pano. A luz do chão entra a 100%. Como o palco é muito largo, quem está na extremidade da grade me vê completamente exposta, quase de frente. Um morador de rua, bêbado, grita em alto e bom som: ‘Agora sim’. Quero matar o técnico de luz. Mas, ao mesmo tempo, a experiência de ouvir o silencio do grande público, somada à manifestação única e genuína daquele homem e ainda à toda emoção de encenar o texto do rabino ao ar livre no Pátio do Colégio, é tão avassaladora…. Ao fazer a burca, sorrio para o morador de rua, procuro com os olhos na tenda de operação de luz e som o técnico: ‘esqueceu, né?’, e sigo a aventura a plenos pulmões. ‘Agora sim’ passou a ser uma piada interna da equipe. Quando algum imprevisto acontece, quando dá merda, quando o teatro exige de nós um desapego absoluto, a gente diz: ‘agora sim! Agora é que tá ficando bom!’”
+ Leia entrevista com Clarice Niskier sobre a expectativa em torno da Virada Cultural 2012.
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