Não gosto dessas histórias que se contam nas famílias, em que alguma tia ou um avô foi perdendo a audição e passou a emendar com disparates uma pergunta ou um caso, e esses episódios seguem animando ajantarados anos afora. Há raspas de trocadilhos nesses casos, e mora aí meu desagrado. Aqui a conversa é outra.
O próprio protagonista divulgou esta história. Marco, chamava-se, ou chama-se; jornalista. Homem alto, bonito, fino, culto, fluente em inglês, um ar meio distraído que era o seu charme — mas surdinho, mouco. Sofrera na juventude uma grave infecção de ouvidos, nariz e garganta, cuja sequela foi um ouvido completamente surdo e o outro prejudicado em 40%. Levava na boa. Na redação do jornal nos comunicávamos com ele na maioria das vezes por gestos, reforçando-os por palavras. Dos tempos em que morou em Londres, ficou com gosto para carro inglês e gatos. Tinha dois. Um, macho, sumiu atrás de fêmeas. Depois sumiu a fêmea, atrás de machos. Conformou-se com aquele desencontro de cios. O veículo que pôde ter não era novo, mas andava bem. No café, Marco contou que o motor passara a fazer um barulho estranho. Era só ligar que a zoeira começava. E olhe que para ele ouvir precisava ser um senhor barulho… Assim que foi possível, levou-o à oficina. No que o mecânico abriu o capô do motor, saltou de lá de dentro, esgoelando desesperada, a gata sumida havia dois dias.
Neste parágrafo falo de uma cena, não conto propriamente uma história. Em algumas famílias, a perda gradativa da audição é comum entre irmãos, herança dividida sem questão. Duas velhas irmãs mineiras, amicíssimas, separaram-se por casamentos, moravam em cidades muito distantes, mas se visitavam até bastante idosas — e surdas. Conversavam horas na varanda mineira, sem que uma ouvisse a outra: uma se lembrava de uma coisa, a outra contava um caso, e assim ficavam naquela conversa amorosa feita de farrapos auditivos, cada uma sentindo em si a surdez da outra, e não se cobravam. Se uma ria, a outra ria; se esta chorava, choravam juntas. Era uma conversa de corações, não de palavras.
E quando aquele que não ouve não é surdo? O motivo não é o barulho, como naquele diálogo de anedota em que o motociclista diz para o garupa que não ouviu o que ele disse porque a moto é muito barulhenta, e o de trás responde que não ouviu porque a moto é muito barulhenta. Falo de quem disfarça a burrice com a surdez, pede que o interlocutor repita o que disse, alega não ter escutado bem, mas, não, o que houve é que não entendeu, e com a repetição se dá mais uma chance de entender.
Por último, um caso que aconteceu comigo, passei por uma situação hilária. Amanheci no domingo com uma oclusão auditiva quase total após dois dias com sinusite. Tinha um almoço marcado entre famílias, a minha e a do poeta Mário Chamie, e não vi motivo para adiar. Mário sentou-se à minha esquerda, o lado do ouvido mais entupido, e a certa altura baixou a voz e falou, falou, num tom tão baixo quanto cheio de gestos de mãos explicativos, algo de grave estava em pauta. Eu dava aquela balançadinha de cabeça que transmite atenção. Até que ele, segurando meu braço, disse em voz mais alta: “Olha pra mim! Olha pra mim” — e aí, como eu estava de frente, leitura labial possível, ouvi: “Mas isso é segredo absoluto, está ouvindo? Absoluto!”. Eu disse que sim, com ar de quem compreende perfeitamente a situação, sem poder repetir uma palavra do que ele havia dito. Foi o segredo mais secreto que eu jamais ouvi.
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