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Momentos Iluminados

Por Ivan Angelo
Atualizado em 5 dez 2016, 14h11 - Publicado em 15 ago 2014, 23h00

Há momentos na nossa vida de leitores que podemos chamar de iluminações, epifanias. São de duas espécies, e começo falando das de iniciação, revelações que ocorrem quando, ainda crianças, lemos alguma coisa que instaura em nós uma pessoa diferente, uma pessoa que leu aquilo. Você já não é, para todos os efeitos de convivência, aquela pessoa que não tinha lido aquilo, você não será nunca mais a pessoa que não leu aquilo. É diferente de uma leitura que se desfaz no seu espírito, colherinha de açúcar no rio. Você passa a ter com as coisas que lê uma relação de expectativas que talvez prejudique as novas coisas — mas que fazer?

Antes do que chamo de epifanias, já havia experimentado emoções galopantes no cinema, em livros e contos de aventuras, em poemas que contam histórias, como Elos de Amor, deJúlio Dinis, e História de um Cão, de Luiz Guimarães. Enfim, um monte de leituras que me pegaram pelas peripécias ou pelas lágrimas. Mas não se comparam com o que chamo também de inaugurações.

O primeiro impacto que eu posso chamar hoje de estético ocorreu quando eu tinha mais ou menos 10 anos, com I-Juca Pirama, de Gonçalves Dias. O poema — naquela época dizíamos “a poesia” — me tocou não só pela história dramática e por lances de heroísmo, os mesmos ingredientes dos meus livros de aventuras, mas também por alguma coisa que tinha a ver com o modo como ele era feito, com o ritmo, as rimas, a cadência de uma dança. 

O segundo impacto revelador foi quando, pelos mesmos recursos da poesia, fui tocado em algum ponto além da emoção pelo discurso inflamado contra a injustiça de O Navio Negreiro, de Castro Alves. Tinha uns 11 anos, fazia o 1º ginasial, que seria a 5ª série do fundamental de hoje, creio. Nessa idade, meninos são paladinos da justiça, e encontrar quem grite por eles, com palavras certeiras que chicoteiam os algozes, é o máximo. Mal comparando, esses momentos são como aqueles Natais mágicos de que a gente não esquece e não reencontra, o que levou Machado de Assis a perguntar num soneto famoso: “Mudaria o Natal ou mudei eu?”.

A segunda espécie de epifania acontece quando você já é um jovem leitor de literatura, mais do que de um livro qualquer, e busca aqueles momentos de luz intensa guardada entre capa e contracapa. Iluminações dos meus 20 anos que não voltam mais. Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa; O Lustre e a Maçã no Escuro, ambos de Clarice Lispector; Fazendeiro do Ar & Poesia Até Agora, de Carlos Drummond de Andrade; Invenção de Orfeu, de Jorge de Lima; Apologia de Sócrates, de Platão; Llanto por Ignacio Sánchez Mejías, de Federico García Lorca, falado por Germaine Montero; O Quarteto de Alexandria, de Laurence Durrell, de elaborada arquitetura, e tantos, tantos outros, ouro de velhas minas ou pepitas de garimpos mais recentes. Dos 30 anos em diante, revelações acontecem, mas já não encontram aquela ávida virgindade.

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Você se torna um leitor rigoroso, seleciona excelências (é diferente de deparar com iluminações), lê, frui, se enriquece, reconhece méritos, admira autores e obras, mas é diferente daquela sensação que o poeta Manuel Bandeira descreve em Noturno da Parada Amorim: “O violoncelista estava a meio do Concerto de Schumann, subitamente o coronel ficou transportado e começou a gritar: Je vois des anges! Je vois des anges! (Estou vendo anjos! Estou vendo anjos!)”.

É difícil ver anjos hoje. Mudei eu ou mudou o Natal?

ivan@abril.com.br

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