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Por Arnaldo Cheixas
Terapeuta analítico-comportamental e mestre em Neurociências e Comportamento pela USP, Cheixas propõe usar a psicologia na abordagem de temas relevantes sobre a vida na metrópole.
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Por que muitas pessoas não enxergam a traição?

As psicólogas Jennifer Freyd e Pamela Birrel, autoras do livro 'Traição', ajudam a entender o delicado tema

Por Helena Galante Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 16 out 2017, 17h41 - Publicado em 16 out 2017, 17h40

Quando uma pessoa é traída, ela pode enfrentar a situação de maneira explícita e assertiva. Isso é o ideal do ponto de vista do equilíbrio emocional mas, apesar disso, é muito comum que uma pessoa traída sequer enxergue a traição que sofre, mesmo com todas as evidências diante de seus olhos. Por que isso ocorre?

Traição é a quebra da confiança previamente estabelecida numa relação. Embora associemos a traição principalmente à infidelidade dentro de um relacionamento amoroso, ela também ocorre em outros tipos de vínculo e, a depender da forma como se reage à ela, as consequências podem ser devastadoras na vida da vítima.

Outra coisa interessante sobre a traição é que ela não acontece apenas nos vínculos individuais diretos. Do ponto de vista psicológico, alguém pode ser traído pela empresa na qual trabalha, pelo governo ou pela sociedade em situações nas quais a traição se mostra como abuso, discriminação ou injustiça.

Todos conhecemos algum caso de traição no qual a vítima não enxerga o que está nítido para quem olha de fora. A infidelidade conjugal é um exemplo comum disso. Uma antiga paciente minha contava histórias de seu casamento focadas em alguma questão pontual da relação mas nas quais a traição do marido aparecia nitidamente. Apesar disso, ela não tinha consciência de que o marido a traía. O ponto culminante desses relatos foi uma história na qual ela viu o marido de mãos dadas com outra mulher num shopping center. Embora soasse estranho, segundo ela o marido estava apenas ajudando a mulher a atravessar a rua do estacionamento.

Outro perfil de vítima de traição que comumente não a enxerga é o infantil. Crianças abusadas por pais, padres ou professores normalmente crescem sem uma consciência acerca do abuso que sofreram, ainda que a traição produza invariavelmente efeitos muito danosos em sua estrutura psicológica.

Mas, afinal de contas, por que isso ocorre? Segundo as psicólogas Jennifer Freyd e Pamela Birrel (autoras do livro Traição), uma pessoa desenvolve uma cegueira para a traição quando ela tem uma relação de dependência com o traídor/agressor. A cegueira acontece, então, por uma questão de sobrevivência.

(Divulgação/Veja SP)

Embora seja ideal que a pessoa enfrente de maneira explícita a traição sofrida (o que começa por assumir que a traição aconteceu), esse enfrentamento coloca em risco o vínculo com o agressor e, dado que existe uma dependência dele (que pode ser emocional ou financeira), isso gera um enorme conflito pessoal.

Diante de uma traição, o sistema nervoso avalia as possibilidades. A primeira opção (ideal) é assumir a traição e enfrentar a situação diante do traidor. Acontece que, caso a vítima dependa de alguma forma do agressor, o sistema nervoso tem de lidar com um dilema pois tem de escolher uma entre duas opções ruins: a) assumir a traição sem fazer nada a fim de manter o vínculo e, consequentemente, a sobrevivência ou b) bloquear involuntariamente a consciência acerca da traição sofrida.

A opção de preservar a consciência sobre a traição é incompatível com a inação do ponto de vista psicológico. Por isso, invariavelmente as pessoas traídas acabam desenvolvendo uma cegueira para a perfídia sofrida.

O caso das crianças é bastante explícito neste sentido uma vez que elas dependem completamente dos adultos para sobreviver. Como uma criança pode, então, enfrentar o pai que abusa sexualmente dela dado que este mesmo homem que a violenta é quem cuida dela e lhe garante o acesso às coisas necessárias à sobrevivência? O mesmo se pode dizer sobre líderes religiosos, chefes, médicos.

O caso do médico especialista em reprodução Roger Abdelmassih é um exemplo forte de cegueira à traição. Ele abusou sexualmente de pelo menos meia centena de mulheres que ele atendeu. Demorou muito até que uma delas tomasse coragem de denunciá-lo. Interessante que, depois disso, outras foram se apresentando uma a uma. Esse caso mostra que assumir uma traição também é difícil pela percepção que outras pessoas têm ao ouvir a história. O julgamento é forte mesmo em relação à vítima que, muitas vezes, passa facilmente rara a condição de responsável pelo abuso da traição. Particularmente as mulheres violentadas são frequentemente questionadas quanto ao abuso sofrido.

Muitas vítimas de abuso por familiares carregam a traição no inconsciente por muitos anos. Esta cegueira tem um custo muito alto, podendo produzir doenças físicas (principalmente dermatológicas, endocrinológicas e oncológicas), doenças mentais (ansiedade, depressão, transtornos dissociativos), além de comprometer a capacidade da pessoa de estabelecer e manter vínculos de confiança e de inserir-se socialmente de maneira adequada.

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O único caminho para a superação do trauma de traição é tomar consciência, aprender a falar sobre ela e enfrentar a situação. Às vezes não há outra opção a não ser o afastamento mas também há ocasiões nas quais a reorganização do vínculo é o melhor caminho. Um exemplo interessante desta opção no nível social foi a Comissão da Verdade formada na África do Sul com o objetivo de trazer a tona tudo o que fosse possível acerca do período de apartheid que o país viveu.

Para muitas pessoas vitimadas pelo preconceito étnico, o simples ato de poder contar acerca do que foi vivido permitiu a superação do trauma e o seguir adiante. O mesmo ocorreu com muitos agressores. A Alemanha tem feito um processo parecido em relação ao holocausto judeu desde a Segunda Grande Guerra. Aqui no Brasil temos tido dificuldade de fazer o mesmo em relação ao período de ditadura militar que vivenciamos. Esta é uma realidade preocupante uma vez que, socialmente, é impossível seguir adiante sem que possamos enfrentar explicitamente os traumas daquele período.

Não importa se traído, traidor ou mesmo observador… a consciência acerca de uma traição sempre afeta a estabilidade das pessoas. Embora a cegueira seja ruim, não podemos esquecer que ela muitas vezes é a única alternativa em dado momento pois é a que garante, em última análise, a sobrevivência. Mas sempre, sem exceção, será necessário na primeira oportunidade, deixar que a traição vá para a consciência.

Um bom exercício para começar a enfrentar a cegueira é escrever sobre a traição. Este talvez seja o recurso mais eficaz antes do recurso de contar para alguém. Para este propósito, é essencial saber escolher o ouvinte pois uma escuta invalidante pode aprofundar ainda mais o trauma da traição.

Não há superação do trauma de traição que não passe pela tomada de consciência e pelo enfrentamento. Cada um tem seu tempo e é importante contar com apoio nesse processo, seja de pessoas próximas, seja de profissionais preparados.

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