“Boca de Ouro” e “A Falecida”, a diferença entre duas leituras de Nelson
Como já era esperado – e felizmente está acontecendo –, o dramaturgo pernambucano Nelson Rodrigues (1912-1980) tem sido intensamente celebrado no ano de seu centenário. Logo, o desafio de remontar seus textos não significa apenas contar bem a história. Muitas delas, como é o caso da chamada tragédia carioca “Boca de Ouro”, são bem conhecidas. […]
Como já era esperado – e felizmente está acontecendo –, o dramaturgo pernambucano Nelson Rodrigues (1912-1980) tem sido intensamente celebrado no ano de seu centenário. Logo, o desafio de remontar seus textos não significa apenas contar bem a história. Muitas delas, como é o caso da chamada tragédia carioca “Boca de Ouro”, são bem conhecidas. Além do teatro, a trama do contraventor de Madureira foi levada às telas dos cinemas duas vezes, uma protagonizada por Jece Valadão, em 1963, e outra por Tarcísio Meira, em 1990. Logo, o interessante para o público é mesmo conferir como será a encenação e de que forma o ator dará vida ao personagem – ainda mais em se tratando de Marco Ricca sob a direção de Marco Antônio Braz, profundo conhecedor da obra do autor.
Em caracterização inspirada, Ricca privilegia mais o lado cafajeste e menos a vilania do famoso bicheiro. O ator mostra-se debochado, sedutor e calhorda. Nascido na pia de uma gafieira e rejeitado pela mãe, Boca compensa o complexo de inferioridade, trocando a dentadura natural por outra feita totalmente de ouro. Sua personalidade é descrita em três versões por uma de suas amantes, dona Guigui (a atriz Lara Córdulla), depois do assassinato do protagonista, de acordo com suas emoções. Para isso, ela conta o envolvimento do protagonista com o jovem casal Celeste (Lívia Ziotti) e Leleco (Willians Mezzacapa).
O diretor Marco Antônio Braz acertou em cheio ao optar por uma atualização velada da trama. A linguagem remete à década de 50, e os conflitos continuam os mesmos, mas muitas vezes a comédia está sobreposta ao drama. Referências às escolas de samba, a desvalorização da mão-de-obra e ascensão e decadência das classes sociais mostram a contemporaneidade da obra de Nelson. O cenário tendo ao fundo uma réplica da Praça da Apoteose exibe já na primeira cena garis de vassoura na mão. Para o bom resultado, Braz conta com um elenco afinado e bem distribuído nos seus papéis. Além de Ricca, o talento promissor de Lívia Ziotti é posto à prova nas várias faces de Celeste, e Lara Córdulla dá credibilidade à instabilidade de Guigui. Em participações menores, mas marcantes, Tatiana de Marca, Luciana Caruso e Jacqueline Obrigon garantem a ironia como as grã-finas que bajulam o bicheiro.
Cartaz do Teatro do Sesi, a montagem integra o projeto “Nelson Rodrigues — 100 Anos”, que também apresenta em dias alternados o menos interessante “A Falecida”, protagonizado por Maria Luisa Mendonça. E o que enfraquece essa encenação é justamente a proposta de uma leitura diferenciada sem o suporte de intérpretes certos para a ideia concebida. Trata-se outra grande história, também já levada ao cinema em uma das raras adaptações que fazem jus ao espírito de Nelson. Dirigida por Leon Hirszman em 1965, Fernanda Montenegro consagrou Zulmira secundada por Ivan Cândido e Paulo Gracindo. A suburbana sonha em ter um enterro de luxo quando morrer, o que na sua cabeça não está muito distante. Casada com Tuninho (papel de Rodrigo Fregnan), torcedor fanático do Vasco da Gama e eterno desempregado, ela consulta uma cartomante e ouve que uma misteriosa loira vai atravessar seu caminho.
Braz colocou a instigante trama no palco, com exaustivas referências ao universo do futebol e, inclusive, uma constante narração de estádio calcada nas rubricas. Diante dessa escolha, o delírio mórbido de Zulmira parece minimizado em uma aposta mais direcionada ao mundo masculino. Supervalorizado, o personagem Tuninho praticamente entra junto no centro da ação, com uma participação tão ativa quando a de Zulmira. Atriz convincente, mas excessivamente refinada, Maria Luisa, por vezes, afasta-se do espírito da personagem e parece um tanto descolocada em meio aquele mundo viril de estádios, bolas e bandeiras.
O principal equívoco, no entanto, é escalar Rodrigo Fregnan para um papel tão forte como o que Tuninho se tornou na leitura de Braz. O ator compõe um personagem muito cerebral e sem a alma do malandro. A cena da prestação de contas entre Tuninho, o marido traído, e Pimentel (interpretado sem expressão por Léo Stefanini), o amante, é um exemplo dessa escolha desacertada. Enquanto ali Maria Luisa atinge o melhor momento cênico – fantasmagórica, sensual e perturbada, como se subisse do inferno –, a dupla não convence nem por causa do poder financeiro ou apelo sexual dos personagens de que teria bala na agulha para levar a morta viva rodriguiana para a cama.