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A saga dos 55 gatos da Sabesp

Um grupo de felinos passou a incomodar a rotina de uma sede da empresa, e uma dedetizadora chamada para o caso era desafeto das ONGs de pets

Por Fernanda Campos Almeida e Pedro Carvalho
Atualizado em 20 ago 2021, 10h35 - Publicado em 20 ago 2021, 06h00
nove gatos tranquilos em abrigo de ong. cada um está de uma maneira diferente, alguns deitados, outros andando e outros sentados, no chão, em cima de uma cama ou em plataformas na parede. quatro deles são pretos, dois são rajados e brancos, outros dois são brancos com poucas manchas e outro é preto e branco
Animais resgatados pela ONG Confraria dos Miados e Latidos na propriedade da Sabesp: em busca de tutores (Rogério Pallatta/Veja SP)
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Tempos atrás, cinco famílias de gatos — que, como clãs das séries de fantasia, não se misturavam entre elas — passaram a viver na Oficina Central da Sabesp, perto da Represa de Guarapiranga, um terreno de 75 500 metros quadrados. Desde 2019, a empresa procurava uma solução para os bichanos, que incomodavam a rotina local. Além de trazerem riscos ao circular entre as máquinas e carros dos funcionários, uma minoria é indócil à aproximação de pessoas. Em junho deste ano, a Sabesp resolveu contratar, por 25 000 reais, uma dedetizadora chamada Loremi, que presta serviço de captura de felinos, para dar uma solução ao caso.

gato caramelo feroz sentado em gaiola 'assoprando' para a foto, para indicar que está bravo
Um dos gatos resgatados considerados indóceis: volta para o terreno (Rogério Pallatta/Veja SP)

Ao saber que a tarefa seria executada pela Loremi, uma “controladora de pragas” do bairro Jardim Maracanã, na Zona Norte, ativistas de proteção animal decidiram fazer barulho junto à diretoria da Sabesp. Em 2015, a Loremi se envolvera em polêmicas ligadas à captura de gatos em terrenos do Carrefour e da Mercedes-Benz no estado. As ações foram apontadas como inadequadas por ambientalistas. “A Loremi defende que os gatos são fauna sinantrópica nociva, ou seja, pragas urbanas. A empresa não tinha os cuidados necessários na captura e havia dúvidas até sobre o destino dos animais”, afirma Tatiana Sales, da ONG Confraria dos Miados e Latidos, que passou a pressionar a Sabesp no caso da Guarapiranga. Outras ONGs, como a Amanimal e a Adote um Gatinho, alegam que teriam sido usadas como fachada pela dedetizadora na época. “Eles divulgavam que os animais iam para nossa sede, o que não era verdade”, diz Doroti Bottoni, da Amanimal.

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A contagem inicial feita pela Confraria constatou que havia pelo menos 55 gatos no terreno da Sabesp. “Podem ser até sessenta. Mas eles são parecidos e pode acontecer de contarmos o mesmo duas vezes”, diz Adriana Tschernev, fundadora da ONG. Em duas missões separadas, no mês de julho, os voluntários conseguiram resgatar 42 gatos — enquanto adiavam a chegada da Loremi, por meio de conversas com a concessionária. No momento, dezenove encontram-se na sede da Confraria, na Vila Prudente (foto de destaque). Três já foram adotados. Outros vinte seguiram para ONGs parceiras, como a Adote um Gatinho. Restam aproximadamente treze no terreno, que a turma ainda não capturou. “Do total, cerca de quinze não poderão ser adotados, por serem arredios”, diz Adriana. Nesses casos, a literatura veterinária determina que sejam devolvidos ao lugar onde viviam, após serem examinados e castrados. Dessa forma, os próprios animais evitam que novos gatos invadam a área.

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No contrato com a Sabesp, a Loremi se dispunha a capturar, castrar e encaminhar para a adoção os felinos. As ONGs afirmam que a empresa não teria equipamentos apropriados para manter os animais, nem capacidade de promover as adoções — justamente porque, após a polêmica de 2015, a dedetizadora se tornou uma desafeta das ONGs, que normalmente são a turma capaz de encontrar novos donos para os bichos. “Recolher é a parte fácil. Difícil é conseguir quem adote”, diz Adriana. No site, a Loremi informa: “não trabalharemos mais com ONGs e não pretendemos fazer mais nenhum tipo de parceria com as mesmas”. Uma funcionária reconhece que “a ausência dessas redes dificulta as adoções”.

“Classificar os gatos como fauna nociva é um retrocesso e reforça preconceitos. Manejá-los como tal é crime de maus-tratos”, diz o Fórum Nacional de Proteção Animal

 

 

A Loremi também faz manejo de pombos e limpeza de fossas sanitárias. No negócio de captura de gatos, iniciado em 2015, aparentemente não tem concorrentes: segundo as ONGs e até onde consta nas buscas on-line, não há outros prestadores privados do serviço na capital — com exceção, bem, da Sanemix, que pertence ao mesmo dono da Loremi, o químico Maurício Alencar. É ele quem assina a responsabilidade técnica do manejo dos gatos, não um biólogo. “Normalmente o recolhimento de felinos abandonados é feito por ONGs, mas elas não podem emitir notas fiscais, recebem por doações — e, para empresas públicas (como a Sabesp), isso é um empecilho”, explica Adriana, da Confraria.

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A permissão para capturar gatos comercialmente é controversa. A Loremi tem um aval estadual para o controle de “pragas urbanas”. O Ibama define que gatos abandonados são passíveis de controle, mas que empresas interessadas devem ter autorização dos órgãos ambientais estaduais. A Secretaria da Saúde e o Centro de Zoonoses, porém, informam que não consideram gatos como pragas urbanas. “A Vigilância Sanitária analisará o caso e tomará as providências cabíveis”, diz a pasta. Para Vânia Plaza Nunes, diretora do Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal, incluir os gatos nessa categoria é um equívoco. “Classificá-los como fauna sinantrópica nociva é um retrocesso e reforça preconceitos. Manejá-los como tal configura crime de maus-tratos”, diz. Em ação ligada aos casos de 2015, o advogado da empresa diz que há preconceito das ONGs, por serem uma dedetizadora.

Vejinha quis conferir se a Loremi tinha mesmo um gatil para guardar os felinos que captura. No primeiro contato, a empresa disse que contava com a estrutura em sua sede. Ao tentar visitá-la, a reportagem foi informada de que, na verdade, o gatil não ficava ali. Dias depois, outra funcionária afirmou que o endereço possuía, sim, o gatil. A visita revelou um ambiente menos aconchegante que a foto exibida no site da dedetizadora (veja abaixo). Sem gatos, havia apenas uma gaiola encostada em um canto.

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foto de espaço grande e bem cuidado, com pedras uniformes no solo
Acima, a imagem usada pela Loremi no site da empresa; abaixo, o gatil real: ex-funcionários se queixam da estrutura (Reprodução/Reprodução)
foto da entrada do gatil da empresa Loremi, com uma porta aberta à direita e três plantas em pequenos vasos à frente de uma parede
(Veja SP/Veja SP)
espaço interno do gatil da Loremi, visto de cima. há uma gaiola vazia no canto e alguns poucos potes virados e encostados nas paredes
(Veja SP/Veja SP)

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Ex-funcionários da dedetizadora, sob anonimato, corroboram algumas das acusações das ONGs. “Não havia gatil na sede da empresa pelo menos até o ano passado. Já aconteceu de gatos passarem dias em gaiolas, sem os cuidados adequados”, diz uma dessas fontes. “Houve situações em que a empresa só recolheu os animais e os abandonou em outro local, sem a castração”, afirma. A Loremi diz que sempre devolve os gatos indóceis ao próprio terreno. Também alega que organiza doações usando as redes sociais dos funcionários (ao todo, são cerca de quarenta). O proprietário não concedeu entrevista.

Após as pressões, a Sabesp achou uma solução para os gatos da Guarapiranga. Os ferozes vão voltar ao terreno onde viviam. “Serão castrados e acompanhados”, diz Adriana. O contrato com a Loremi está suspenso. A Sabesp promete criar um ponto de alimentação para os bichanos. Interessados em adoção: falar com as ONGs.

gatos com cara de entediados olhando para a câmera. um deles está de pé e os outros dois estão deitados em uma cama rosa. dois são rajados e um dos sentados, preto
Bichanos retirados do terreno da Sabesp: empresa, no fim, decidiu seguir com alguns animais (Rogério Pallatta/Veja SP)
dois gatos repousando em estrutura própria para felinos amarela presa à parede. cada um está em um nível. um deles é multicolor e o outro é laranja e branco
(Rogério Pallatta/Veja SP)

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Publicado em VEJA São Paulo de 25 de agosto de 2021, edição nº 2752

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