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As clínicas paulistanas que usam psicodélicos para tratar depressão grave

Procura por substâncias como cetamina e ibogaína tem alta; elas também são usadas contra dependência química

Por Pedro Carvalho
Atualizado em 24 mar 2023, 16h54 - Publicado em 24 mar 2023, 06h00

“Durante as sessões, eu coloco fones de ouvido com música clássica. Se fixo a atenção em uma nota musical, ela se transforma em uma cor. Acho a ‘viagem’ muito gostosa”, diz Sônia Bonadio, 73, bancária aposentada e moradora do Campo Belo. Em janeiro, quando começou a tratar uma depressão severa com cetamina, um anestésico classificado pelos psiquiatras entre os “novos psicodélicos”, o quadro era crítico. “Não tinha mais ânimo para tomar banho, andava pensando em ‘dar uma sumida do mundo’”, ela conta. Após seis sessões com a substância, feitas em uma clínica de Pinheiros, Sônia relata uma melhora significativa. “Os antidepressivos que tomava não tinham mais efeito. Com a cetamina, depois de duas aplicações eu me sentia outra pessoa”, afirma a paciente, que, em março, preparava as malas para passar uns dias em Foz do Iguaçu com a irmã.

Por anos usada de maneira recreativa em festas e baladas, a cetamina (ou quetamina) vive um boom em São Paulo para o tratamento de uma doença específica: a depressão refratária, aquela que não se resolve após o uso de dois ou mais antidepressivos, frequentemente acompanhada da chamada “ideação suicida”.

“Um terço dos pacientes de depressão não respondem aos medicamentos comuns. Quando tentam a cetamina, entre 50% e 70% têm uma melhora relevante, ou seja, uma redução de pelo menos 50% dos sintomas. Aproximadamente 30% entram em remissão (a total ausência, ainda que temporária, dos males da doença)”, afirma o psiquiatra Dartiu Xavier, coordenador do ambulatório de dependência química da Unifesp e pesquisador dos psicodélicos desde os anos 1990 — os dados são amparados por diversos estudos clínicos. O uso para a depressão leve, ansiedade, dores ou casos de estresse pós-traumático, menos consolidado, também tem crescido na cidade.

O psiquiatra Rodrigo Delfino e o CEO da Beneva, Marco Algorta.
O psiquiatra Rodrigo Delfino e o CEO da Beneva, Marco Algorta. (Alexandre Moreira/Veja SP)

Carro-chefe de pelo menos cinco clínicas particulares em São Paulo, quase todas novas ou em ampliação (e todas em bairros nobres), a cetamina não é uma substância proibida. É usada desde os anos 1960 em exames e cirurgias que requerem anestesia geral. O uso para a depressão, porém, é off-label, ou seja, não está previsto na bula ou na regulamentação da Anvisa. A exceção é um spray nasal da Janssen, o Spravato, feito para o tratamento psiquiátrico. Mas custa por volta de 3 000 a unidade e praticamente não é usado nas clínicas, que optam pelas versões endovenosa ou subcutânea — em que um frasco sai por 50 reais.

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A prática é amparada por pareceres de conselhos de medicina e diretrizes internacionais, como as dos Estados Unidos e do Canadá, que atestam a eficácia do método. A cetamina atua de maneira similar à de outros psicodélicos cujo uso contra doenças psíquicas tem crescido, como a ibogaína e a psilocibina — a primeira derivada da raiz de uma planta, a segunda de cogumelos. Todos provocam, além de “experiências dissociativas” durante as sessões, a chamada neuroplasticidade, ou seja, a criação de novas ramificações dendríticas nos neurônios do cérebro — no popular, novas “perninhas” nessas células.

O atual entendimento da ciência é que a repaginada no órgão é a principal explicação para a rápida melhora da depressão, embora os insights surgidos nas “viagens” também sejam usados no tratamento psicoterápico. “É como se nosso cérebro fosse uma montanha de esqui cheia de sulcos na neve. Toda vez que lidamos com um problema, nossos pensamentos entram nessas valas e percorrem caminhos viciados. A cetamina provoca uma ‘nevasca’, ou seja, nos dá a chance de pensar de maneira diferente”, diz Marco Algorta, CEO da Beneva, clínica em Pinheiros utilizada por Sônia, do início do texto.

A marca acaba de receber um aporte de 1,25 milhão de dólares (6,6 milhões de reais, no câmbio atual) para expandir o uso de psicodélicos em São Paulo, a maior parte desembolsada por fundos canadenses. Em abril, vai inaugurar uma nova unidade na Vila Clementino. “O plano é chegar a quarenta salas de infusão na cidade, o que significaria um faturamento de 10 milhões de dólares ao ano — e, ainda assim, teríamos só 0,3% do mercado potencial paulistano para esses tratamentos”, diz.

Juliana Surjan, coordenadora da clínica de cetamina da Unifesp.
Juliana Surjan, coordenadora da clínica de cetamina da Unifesp. (Alexandre Moreira/Veja SP)

Não é uma terapia barata. A sessão custa pelo menos 600 reais, mas passa de 1 000 reais em alguns endereços. Por ser um uso off-label do anestésico, o método não tem cobertura dos planos de saúde. “Mesmo para aplicações do spray nasal, a absoluta maioria dos convênios nega os pedidos de pacientes”, afirma o psiquiatra Ivan Barenboim, fundador da clínica Ór, nos Jardins.

Até o ano passado, o especialista atendia em um consultório na Rua Teodoro Sampaio, mas a alta demanda motivou a mudança para um espaço maior, onde circulam em média vinte pacientes por dia. “A imensa maioria é totalmente ‘careta’, não tem ligação com o uso recreativo de psicodélicos”, diz Barenboim. “A prática mostra, porém, que aquelas que sentem experiências mais intensas nas sessões têm melhores resultados no tratamento”, completa.

A Unifesp, com ampla pesquisa sobre o tema, tem ainda um pequeno ambulatório onde faz aplicações pelo SUS, na Vila Mariana. “Abrimos em 2017 e levamos três anos para atingir a marca de setenta pacientes. Apenas em 2023, serão mais de noventa — e temos uma fila de espera de cinco meses”, diz a psiquiatra Juliana Surjan, uma das coordenadoras do local.

Clínica da Unifesp, na Vila Mariana tem sessões pelo SUS.
Clínica da Unifesp, na Vila Mariana tem sessões pelo SUS. (Alexandre Moreira/Veja SP)

Com duração aproximada de 45 minutos, as sessões são feitas em ambientes controlados — precisam ser equipados para pequenas cirurgias e a presença de um médico é obrigatória — e provocam “viagens” variadas entre os pacientes. “A sensação é de que você está em um sonho muito realista. Vejo pessoas e lugares do passado — por isso, no dia seguinte costumo ficar muito pensativa”, conta Giovana Martins, 29, moradora de Pinheiros. Um ano atrás, quando começou o tratamento com cetamina, ela sofria de depressão refratária e crises de pânico. “Os pensamentos tinham passado de ‘quero sumir’ para ‘quero me matar’”, conta.  No início, fazia infusões duas vezes por semana. Hoje, faz uma vez a cada três semanas e teve uma melhora quase completa do quadro. “Nas sessões, sinto também uma sensibilidade muito grande na audição — daí a necessidade de usar fones com música — e o corpo dormente”, diz.

“Para mim, a melhor parte é a viagem”, conta a empresária Cristiana Faria, 48, moradora do Itaim — que afirma nunca ter provado drogas alteradoras da consciência. “Eu ‘encontro’ meu pai e pessoas que já morreram, converso, abraço. Conto os dias para fazer novamente”, diz a paciente.

Segundo os proprietários das clínicas, as bad trips, ou viagens ruins, com possibilidades de surtos, acontecem em 5% dos casos. Menos popular — e um tanto mais potente — que a cetamina, a ibogaína não pode ser comprada no Brasil. Os pacientes precisam importar a substância com autorização da Anvisa. A aplicação requer internação hospitalar — a Beneva, pioneira no uso comercial da droga, conduz tratamentos na Santa Casa de Ourinhos, no interior do estado, desde abril do ano passado. A técnica envolve uma única aplicação — precedida de consultas com psicólogos — e custa 12 500 reais. “Atendemos de duas a três pessoas por semana, 40% delas de São Paulo. Nunca tiveram problemas para importar o produto”, diz Algorta.

No caso da ibogaína, quase todos os pacientes têm dependência química, doença que tem a depressão como uma frequente comorbidade. Os resultados, assim como na cetamina, costumam ser rápidos e convincentes. “Participei do único estudo feito no país, que acompanhou 75 dependentes de crack, cocaína, heroína e outras drogas. A eficácia foi de 62% (em torná-los abstinentes). Quando associada a antidepressivos e remédios tradicionais, chegou a 72%”, diz Bruno Rasmussen, médico especializado na substância. “Tenho pacientes que tentaram dezenas de internações e, após aplicarem a ibogaína, dizem: ‘Não consigo entender por que eu já tive vontade de usar drogas um dia”, ele afirma.

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A experiência da ibogaína é intensa — e raramente agradável. O efeito dura entre seis e oito horas, período em que o paciente terá tonturas, tremores, enjoo e visões de traumas do passado. “Não conheço registros de uso recreativo”, afirma Rasmussen, que pesquisa a droga desde 1994. Também indutora da neuroplasticidade, a substância mostra eficácia contra dois vilões da dependência química: a fissura e a síndrome de abstinência. Tem ajudado, ainda, a melhorar a depressão que os dependentes químicos normalmente apresentam.

Ivan Barenboim, psiquiatra e fundador de uma clínica nos Jardins.
Ivan Barenboim, psiquiatra e fundador de uma clínica nos Jardins. (Alexandre Moreira/Veja SP)

De maneira mais experimental, a psilocibina (dos cogumelos) e o MDMA (sintética) também têm sido usados contra a depressão, ingeridos durante sessões de terapia. No caso do MDMA, um estudo de 2018 publicado no Jornal Brasileiro de Psiquiatria acompanhou três pacientes com estresse pós­traumático (vítimas de abuso sexual) que tiveram melhoras significativas. A substância está em vias de ser aprovada nos Estados Unidos para o uso contra essa síndrome específica.

Tanto o MDMA como a psilocibina são proibidos no Brasil e não podem ser importados legalmente via Anvisa. Quem ouve os relatos daqueles que se tratam com os psicodélicos tem a impressão de que, talvez pela primeira vez, as substâncias trazem uma solução rápida e similar a uma “cura” para doenças como a depressão grave e a dependência de drogas. “É um salto que a psiquiatria não via desde o surgimento dos antidepressivos”, diz o psiquiatra Rodrigo Delfino, especialista em cetamina. “E novos usos devem ser aprovados em breve”, adianta.

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Publicado em VEJA São Paulo de 29 de março de 2023, edição nº 2834

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