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Reencontro

Por Ivan Angelo
Atualizado em 5 dez 2016, 19h44 - Publicado em 18 set 2009, 20h18

Encontro N., assessor de imprensa. Assessores de imprensa são jornalistas a favor. Nada de denúncias, de furos, de reportagens investigativas, de cultivar fontes, de correria para fechamento, de horários esquisitos de trabalho. Hoje, toda empresa, celebridade, associação, federação, todo clube de futebol, político, sindicato, governo, todo poder tem a sua assessoria de imprensa.

Não são personagens de agora. Lembram-se da Aerp, dos governos militares, Assessoria Especial de Relações Públicas? Antes dela, já havia jornalistas que escreviam “informes publicitários” para os jornais. Outros escreviam “esclarecimentos”. Em certos órgãos era possível publicar “matéria paga” e havia de ter quem a escrevesse. Com o tempo, empresas e poderes começaram a precisar de gente lá dentro para fazer isso.

Muitos do velho jornalismo que perderam lugar na imprensa foram para as assessorias ou fundaram uma sua. Esse amigo, N., está entre os últimos. Fala-me, meio irritado, meio irônico, que recebeu um e-mail convidando-o para o encontro da turma de 64 do curso de jornalismo.

– Já imaginou? – me diz. – A cantoria de músicas daquela época. A dolorosa constatação de que aquelas colegas gostosinhas estão acabadas. A pichação nos que ficaram ricos e não apareceram. O inventário das gotas, hérnias, úlceras, cataratas e artrites. Os casos de netinhos. A chorumela de que aquilo era jornalismo, não o de hoje… Ah, me poupe.

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Acabou indo, “para não falarem pelas costas”, e divertiu-se. Tinham virado todos assessores de imprensa. Menos um, para espanto do paraibano ruivo:

– Ainda fechas jornal? Prefiro a aids!

Dispersos na grande cidade, havia décadas que alguns não se viam. Foram aos poucos ficando ruidosos na ala reservada pela churrascaria, estimulados por reencontros e chopes. Lembravam-se de casos e figuras; desprezando as cadeiras, preferiam rodinhas e a proximidade do cutucão na barriga.

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Reviveram os botequins da madrugada, heróicos botequins que bancaram penduras. E casos, casos. De um que voltou do boteco para casa de manhãzinha, pisando macio, e deu com os filhos em uniforme escolar e a mulher em volta de um bolo com velinhas apagadas já meio tortas, só então se lembrando de que fora seu aniversário, e em meio ao silêncio de reprovação abriu os braços: “Ninguém vai cantar parabéns pro papai?”. De outro que bebia demais, e numa das suas fases inventou o coquetel semáforo, em três copos separados, enfileirados, que bebericava na seqüência: verde (licor de menta), amarelo (conhaque) e vermelho (campari). Da repórter mais linda, que namorou programadamente cinco colegas, menos um, apaixonadíssimo, que ela percebia lá do outro lado da rua, olhando para sua janela, mortificando-se, enquanto ela folgava com os felizardos. De outro que dormiu com o cigarro aceso e foi acordado pelos bombeiros quebrando a porta do seu apartamento a machadadas. De outro que ligou para a sucursal do Rio fingindo preocupação porque um aviãozinho havia caído na Praia de Copacabana às 3 horas da tarde, e o chefe de reportagem tranqüilizou-o, “estamos cobrindo”, e ele, gozador: “Não, eu só queria saber se não machucou alguém aí da sucursal”.

Riam, riam. Ouviu de cara boa até os casos de netinhos, com direito a imitação tatibitate. Nas conversas, havia reencontrado uma pessoa que ia perdendo: ele mesmo. Contou-me tudo, e comentou:

– Foi uma tarde ótima! Agora eu quero é mais. Que venham as turmas do serviço militar, do colégio, do ginásio, do curso primário, do pré!

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Viu que há maneiras de nos olharem, as lembranças são interpretações, as memórias superpostas moldam personas, enquanto nos elaboramos de modo diário e miúdo, construímo-nos de dentro para fora, como um cupinzeiro – carapaça rija por fora, fervilhando de vida por dentro.

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