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Ouvindo vozes

Por Ivan Angelo
Atualizado em 5 dez 2016, 18h49 - Publicado em 7 Maio 2010, 18h11

Que você acha da voz do Faustão? Do Marlon Brando? Da Xuxa? Do Raul Gil? Do Lula? Do Bush? Da sua voz?

A do Lula vem raspando como se a passagem fosse estreita, carro em túnel apertado.

A da Xuxa lembra personagem de desenho animado infantil.

A do Faustão é empolgada como se anunciasse algo sensacional — e não é nada disso.

A do Raul Gil sai como se ele estivesse sendo esganado.

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Outras dão conforto aos ouvidos. A do William Bonner parece afinada por maestro. Na grande época do rádio, mulheres se apaixonavam por vozes, e não estamos falando de cantores. Vozes de locutores, de narradores. Homens de vozes aveludadas, como César Ladeira e Ramos de Carvalho, diziam poemas e crônicas, interligavam cenas de radionovelas, liam orações. Havia no rádio vozes poderosas, e sem arestas, como a de Heron Domingues, que provocava sobressaltos em “edições extraordinárias” do noticiário. Muitos se deixaram encantar pela beleza da própria voz e a estragaram, como o Cid Moreira, hoje exagerado, fácil e canastrão. A voz chique virou kitsch.

Entre as vozes profissionais, que garantem emprego a seus donos, estão as dos atores. Paulo Autran tinha a voz levemente anasalada, mas a colocava onde quisesse para obter o efeito exato. A de Paulo César Pereio, encorpada, maleável, transita precisa do palco aos microfones. Orson Welles foi um insuperável manipulador da voz, em volume, alcance, expressão, versatilidade. Vincent Price, vilão famoso pela voz, acrescentava a ela sobrancelhas. A de Marlon Brando era fanhosa e sem ressonância, mas ele a compensava com silêncios maravilhosos. Nas radionovelas, pela voz se identificavam vilões, mocinhas e megeras, os ouvintes “viam” a cara e a alma do personagem.

Hoje, ouvindo certos atores e atrizes da televisão, dá-se o contrário. Você vê cara, não vê coração. Caras bonitas atrapalham a percepção. Quais têm vozes maravilhosas? Não percebemos, ou não têm. No mundo real, certas vozes, mesmo de desconhecidos, mesmo ouvidas de passagem, nos tocam de modo mágico, trazendo um não se sabe quê de lembranças, ressonâncias, modulações. Nesse caso, nem precisam ser bonitas — são como coisas que guardamos em alguma caixa e que estão à nossa espera para uma surpresa.

A voz que soa bonita e sensual ao telefone nos leva a imaginar alguém que não tem nada que ver com a pessoa real. Tive uma namorada que se derretia quando topava com uma dessas vozes sedutoras do outro lado da linha, e me provocava: “Que voz! Ai, uma voz dessas cochichando no meu ouvido!”. Uma reportagem mostrou como são enganadoras as vozes do disque-erótico.

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As contradições nos pegam de surpresa, fazem rir. Nos anos 1970, muitos homens usavam bigodão. De repente o bigodudo falava, e ó decepção: voz fina. Rivellino, do Corinthians, era um. Hoje já fala mais encorpado. No jornal tínhamos o encantador Vlad, bigodudo gay, contradição dupla.

No capítulo decepção, entro eu. A primeira vez que ouvi minha voz gravada, detestei. A gente não tem noção da própria voz enquanto não a ouve reproduzida; quando falamos e a ouvimos dentro da própria cabeça, ela é uma; vinda de fora para dentro é outra. O desagrado se repetiu ao longo dos anos, em entrevistas e depoimentos. Toda vez que ouço uma voz poderosa, que se impõe pela modulação e não pelo volume, sinto um “quem me dera”.

 

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