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Quem são os que ajudam pessoas em situação de rua em noites geladas

Com a chegada da frente fria histórica em maio, grupos de voluntários tiveram de se mobilizar mais cedo para angariar donativos; saiba como ajudar

Por Sérgio Quintella e Clayton Freitas
Atualizado em 28 Maio 2022, 08h28 - Publicado em 27 Maio 2022, 06h00

A primeira semana de frio intenso do ano chegou forte, com 6,6 graus na madrugada no dia 18, a menor temperatura para o mês de maio em 32 anos. Essa onda gelada mobilizou mais uma vez grupos de voluntários para socorrer emergencialmente um contingente gigantesco de pessoas em situação de rua, cujo número não para de crescer. Segundo dados da prefeitura, do fim do ano passado, 31 884 homens, mulheres, adolescentes e crianças vivem ao relento e necessitam de auxílio para conseguir comer, dormir e se aquecer. O número é 31% maior do que o verificado em 2019, antes da pandemia — em contrapartida, a cidade tem 15 000 vagas em albergues, e criou outras 2 000 emergencialmente agora.

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Além da elevação numérica dos que vivem na rua, o perfil dessas pessoas também sofreu alteração. “A população de rua não é a mesma. Antes eram homens de 40, 50 anos, majoritariamente negros. Não víamos tantas famílias como agora. Chegamos a encontrar grupos de doze pessoas na rua, todas da mesma família. Isso muda toda a conjuntura”, afirma o assistente social Lucas Amaral, 29, que chegou a morar nas ruas paulistanas por seis meses e hoje é assessor da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social.

Habitualmente preparadas para atuar nas frias madrugadas paulistanas lá por meados de junho, quando as primeiras frentes frias começam a derrubar as temperaturas por aqui, muitas instituições voluntárias precisaram se antecipar para poder aquecer um pouco as vidas alheias. E por que não as suas próprias? “De fato nessa época do ano aumenta mesmo a solidariedade. As pessoas começam a entender o que é empatia, e se colocar no lugar do outro”, afirma Antenor Ferreira, 69, o Kaká, da ONG Anjos da Noite. Nas próximas páginas, conheça alguns integrantes dessa “tropa do quentinho”.

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Médicos nas ruas

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Atuando há mais de vinte anos em 23 pontos de todas as regiões da capital, os voluntários da ONG Bem da Madrugada perceberam que além da falta de comida, kits de higiene e roupas de frio, as pessoas em situação de rua se queixavam de problemas de saúde. “Pensamos em ampliar e chamamos médicos para ajudar”, conta Priscila Rodrigues, 33, que deixou uma carreira promissora como gerente comercial para se dedicar 100% ao projeto. Nascia ali o Médicos nas Ruas, um dos braços da ONG Bem da Madrugada, hoje coordenado por outra Priscila, a médica pediatra Priscila Cursi, 30.

Um homem e duas mulheres, todos brancos, atendem um homem deitado no chão, em situação de rua. Eles usam um uniforme preto e possuem estetoscópios no pescoço
Doutores e voluntários: problemas de saúde lideram queixas (Alexandre Battibugli/Veja SP)

O grupo tem oitenta médicos cadastrados, número que aumenta com a ajuda de estudantes de medicina. Algumas ações já chegaram a contar com mais de 200 médicos e estudantes nas ruas. O trabalho consiste em perguntar sobre o estado de saúde das pessoas, limpar alguma ferida exposta, fornecer medicamentos para queixas mais simples e orientar como a pessoa pode procurar ajuda. “Houve casos em que precisamos chamar o Samu devido à gravidade da situação”, conta Cursi. PIX para doação: pix@medicosnasruas.org

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Assistência que vem do berço

Filha de pai e mãe voluntários, a assistente social Erika Mota, 47, nem bem saiu das fraldas e já ia a ações sociais no centro, na periferia, onde houvesse necessidade. Mal sabia ela que o voluntariado seria seu principal alicerce quando mais sofreu na vida. “Perdi minha mãe agora na pandemia e me joguei nas questões sociais. O próximo passo é montar o Instituto Maria Helena Mota.” Enquanto o objetivo não é alcançado, Erika, que trabalha na Sabesp, possui uma página no Instagram (@inteligenciasolidaria) e costuma reunir seus colegas para angariar donativos e realizar doações, arrecadou 3500 reais na última semana e comprou 100 cobertores.

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Erika, uma mulher branca e de cabelos escuros e cacheados, está agachada embaixo de um viaduto e distribui cobertores a pessoas em situação de rua em volta
Erika (agachada), ao distribuir 100 cobertores: desde a infância (Alexandre Battibugli/Veja SP)

Os materiais foram entregues em uma favela construída embaixo do Viaduto Alcântara Machado, o primeiro da Avenida Radial Leste, na Mooca. “Muita gente quer doar e não sabe por onde começar. Uma amiga se separou recentemente e me ligou para que eu a ajudasse a se desfazer de mais de cinquenta bichinhos de pelúcia. Falei para ela doar para uma ONG. As pessoas não sabem como podem ajudar.” PIX para doações: inteligenciasolidariaoficial@gmail.com

Doação de mão de obra

Beneficiado com uma vaga no curso de gastronomia da Escola de Formação Profissional do Fundo Social de São Paulo, em parceria com a Central Única das Favelas (Cufa), na favela de Paraisópolis, um grupo de alunas se voluntariou para preparar alimentos na própria cozinha industrial onde aprendem um novo ofício. O resultado que sai das panelas vai diretamente para pessoas carentes da segunda maior comunidade da capital. “As alunas disponibilizam seu tempo, sua experiência, sua gratidão. Ontem (19), entregamos 200 sopas”, comemora a professora Maria Cristina Cruz, 47, a Cris, que está há dois anos no projeto. No sábado (21), com os termômetros ainda baixos na capital, as voluntárias repetiram as ações e entregaram mais 200 sopas. PIX para doações: doacoes@cufa.org.br

Quatro mulheres com toucas de cozinha estão em volta de uma mesa de metal em uma cozinha industrial
Professora, alunas, voluntárias: duzentas sopas em cada dia (Alexandre Battibugli/Veja SP)

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Dar o pão a quem tem fome

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O projeto Pão do Povo da Rua é conhecido por distribuir no café da manhã um pãozinho quatro vezes mais nutritivo do que o normal. O frio intenso deste ano levou o grupo a estender o turno e a doar sopa, cobertores, luvas e meias à noite. Como muitos voluntários trabalham de dia, alguns aparecem após o expediente. É o caso do engenheiro Kauê Lobão, 25, que foi pela primeira vez ajudar o grupo levando 3 000 reais em dinheiro, reunidos com apoio de 32 amigos.

Dois homens, um deles com uma dólmã e o outro com um avental de cozinha, preparam sopas em uma mesa ao lado de uma van amarela
Grupo que distribui pão e sopa: expediente dobrado (Alexandre Battibugli/Veja SP)

Outra que se mobilizou foi a advogada Adriana Orsi, 27. Ela organizou um mutirão relâmpago no escritório e conseguiu dinheiro para montar cinquenta kits frio (cobertor, luva e meia). Apesar de tanta ajuda, a crise também chegou ao grupo. O chef Ricardo Frugoli, 53, idealizador do projeto e também fundador de um instituto de pesquisa da culinária e cultura brasileiras, o IPCB, diz que a alta do trigo no mercado mundial, forçou a redução na quantidade distribuída de pães 3 000 para 2 400. PIX para doações: 31.721.081/0001-42

Madrugadas mais longas

Bem antes dos primeiros sopros frios que derrubaram a temperatura na capital, a assistente social Daliléia Lobo, 36, a Léia, já sabia que sua rotina precisaria ser mudada, mas não tão rápido. Responsável administrativamente pelo Núcleo de Convivência para Adultos em Situação de Rua, conhecido como “Chá do Padre”, Léia trocou o dia pela noite. “Tínhamos uma reunião no dia 16 de junho para decidir quando abriríamos para o pernoite, mas por causa da frente fria precisamos nos reorganizar para oferecer até 100 vagas para eles dormirem.”

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Léa é uma mulher branca, magra, de cabelos lisos e escuros. Usa óculos. Está sentada em um banco no prédio do Chá do Padre
Léia, no Chá do Padre: sem volta para casa (Alexandre Battibugli/Veja SP)

Dito e feito. No primeiro dia, foram atendidas setenta pessoas. No segundo, foram 95, até chegar a uma centena. “Não tenho horário para entrar, nem para sair, pois preciso treinar as novas equipes. Saio todos os dias de Cotia e teve vez que não voltei para casa. Dormi por aqui mesmo”, conta. A rotina só deve voltar à normalidade quando os novos funcionários estiverem adaptados. “Precisamos de gente que as pessoas daqui conhecem, confiam.” PIX para doações: sefras@sefras.org.br

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Frase de gratidão batiza ONG

Há 33 anos, em uma noite fria de agosto, uma pessoa em situação de rua que ficava na Amaral Gurgel, no centro, recebeu donativos das mãos do funcionário público Antenor Ferreira, 69. Agradeceu e disse: “Você é um anjo da noite”. Kaká, como é mais conhecido pelos amigos, diz que a frase não só ficou na sua cabeça como marcou sua vida. Dias depois reuniu amigos, fizeram um sopão para cerca de 100 pessoas e distribuíram na mesma Amaral Gurgel. Repetiu a dose e decidiu se dedicar ao voluntariado após o trabalho, fundando a ONG Anjos da Noite. Hoje, o grupo conta com cerca de oitenta pessoas que todos os sábados distribuem cerca de 800 refeições, além de kit de calçados, higiene e o que mais conseguem arrecadar para pessoas em situação de rua nas imediações da 25 de Março, Parque Dom Pedro II e Sé. O frio intenso da segunda quinzena de maio o levou a fazer doações extras à noite. PIX para doações: 67.637.231/0001-81

Um homem de roupa de frio e gorro coloca um cobertor cinza em cima de um homem que dorme na rua
Anjo da Noite em ação: 800 refeições aos sábados (@anjosdanoite.ong/Reprodução)

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Solidariedade em família

Ao ver pela TV a imagem do aumento de pessoas em situação de rua na cidade, a administradora de empresas Marilda Di Rienzo, 60, ficou sensibilizada. Reuniu o marido, amigos, filhos e começou, há um ano, a produzir e distribuir kits, que incluem copo de leite com chocolate quente, bolo e sanduíche, além de roupas e calçados. “Resolvemos colocar a mão na massa e não paramos mais”, diz.

Grupo de pessoas, entre homens, uma mulher e crianças com roupas de frio, em volta de uma caminhonete na rua
O contador Amauri Di Rienzo (de touca verde) e a família em doação na região do Belenzinho, na Zona Leste (Clayton Freitas/Veja SP)

O grupo é pequeno, não tem nem nome, e todos os envolvidos são de alguma forma ligados ao escritório de contabilidade da família Di Rienzo, inclusive os voluntários, funcionários da empresa. Cada um tem uma função. Marilda e uma amiga recebem os donativos e tiram do próprio bolso quando preciso. O patriarca da família, Miguel, 73, faz as compras. O filho, o contador Amauri, 37, ajuda na distribuição do que couber na caçamba da caminhonete, em doações feitas quinzenalmente. Os pontos de distribuição variam e geralmente é para quem se encontra no trajeto. “É um trabalho viciante e por mim faria toda semana”, afirma Marilda.

Apoio aos imigrantes

Principal porta de entrada para parte dos imigrantes que desembarcam na metrópole em busca de um emprego e uma vida melhor, a Missão Paz, no Glicério, auxilia os estrangeiros com cursos, obtenção de documentos, cestas básicas, entre outros. Anualmente passam pelo local entre 8 000 e 9 000 pessoas. Além do pároco da Igreja Nossa Senhora da Paz, o italiano Paolo Parisi, o espaço conta com a atuação de seis médicos voluntários. Desde o início da pandemia, os imigrantes mais vulneráveis que passam por ali são os bolivianos, vindos ao país com a promessa de empregos no ramo da costura. PIX para doações: 62.806.682/0004-24

Um padre branco, magro e careca posa em frente aos bancos de uma Igreja Católica. Ele usa camiseta azul marinho e calça jeans
Padre Paolo Parisi: até 9 000 estrangeiros por ano (Alexandre Battibugli/Veja SP)

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Das ruas para as ruas

O homem com um crachá da prefeitura preso ao pescoço, que conversa com moradores de rua em uma das tendas instaladas pela administração municipal, sabe bem o que a outra pessoa fala e sente. Lucas Amaral, 29, assessor da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (Smads), já foi um deles. “Eu tive trajetórias de rua há cinco anos. Fiquei seis meses e depois comecei a trabalhar na secretaria”, conta o jovem, que foi encarregado diretamente pelo chefe da pasta, Carlos Bezerra Junior, a andar pelas frias madrugadas da metrópole para verificar as condições dos equipamentos temporários.

Um homem pardo, de barba e cabelos escuros, conversa com um homem também pardo em situação de rua. Eles estão na Praça da Sé e o morador de rua está envolto em um cobertor
Lucas, na Sé: seis meses vivendo sem um teto (Arquivo Pessoal/Divulgação)

O padre na Kombi

Um dos principais representantes do povo em situação de rua, e com algumas ações conjuntas com o xeque Rodrigo Jalloul, líder religioso muçulmano, o padre Júlio Lancellotti saiu com sua Kombi, de madrugada, tão logo os termômetros começaram a desabar. Com cobertores, sopas e sacos de dormir, chamou uma ambulância para levar um homem que estava prestes a sofrer uma hipotermia. Doações podem ser feitas em dois endereços: Rua Taquari, 1100, na Mooca, e Rua Djalma Dutra, 3, na Luz. Pix para doações: 63.089.825/0097-96

Padre Júlio, na Mooca: próximo de quem precisa
Padre Júlio, na Mooca: próximo de quem precisa (Alexandre Battibugli/Veja SP)

Banho de dignidade na rua

Uma iniciativa do coletivo Casa de Vó, em parceria com o Instituto de Políticas Relacionais, o Banho pra Geral é caracterizado por uma carreta móvel com uma caixa da água de 440 litros. O espaço conta com dois banheiros individuais, com chuveiros de água quente e uma pia externa. Às pessoas é oferecido um kit de higiene, que inclui toalha, shampoo, condicionador, pente, sabonete, creme dental e escova de dentes, além de uma muda de roupas, alimentos e cobertores. Já foram realizados mais de 1 000 banhos na capital. As ações ocorrem a cada quinze dias. PIX para doações: 28.834.306/0001-62

imagem mostra mulher olhando para um espelho

Banho pra geral: autoestima elevada

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Publicado em VEJA São Paulo de 1 de junho de 2022, edição nº 2791

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