Mudança é complicado, mas tem gente que encara com a maior facilidade. Começa botando defeitos no lugar onde está e acaba se mudando. Ter uma casa ou apartamento, em vez de alugar, pode ser um freio para os inquietos, mas nem sempre. Há inquietos que não se seguram nem diante da temeridade de vender, comprar, reformar, empacotar, carregar, descarregar, desempacotar, arrumar. O impulso de mudar é mais forte.
Compreendo as tribos nômades, quando a caça rareia e há que buscar lugares de melhor sustento; compreendo as aves migratórias, que fogem do clima e da fome; compreendo os que melhoram de vida e procuram moradia mais compatível; compreendo os que saem do aluguel para a casa própria; e compreendo os incomodados que se retiram. Há, entretanto, os leves de cabeça.
Uma prima, em doze anos de casada, mudou-se onze vezes, três delas de casa própria para alugada e vice-versa. Até que o marido se mudou sozinho. Um dos meus genros diz que gosta de mudar, de arrumar a casa nova, de cheiro de tinta e de madeira. Acho que o melhor é deixar-se estar, se onde se está não estiver ruim. Deixar-se estar é das coisas boas da vida.
E depois é preciso considerar que nós, da classe média, estamos vivendo um período de desencontro entre os objetos e a moradia. As indústrias de artigos domésticos e da construção civil parecem caminhar em direções divergentes. Os móveis já não passam nas portas e nas escadas, não entram nos elevadores. Multiplicam-se os serviços de içamento, com preços absurdos que vão de 600 a 2 500 reais. Por peça!
Há geladeiras que a classe média pode comprar mas que não entram nos apartamentos que ela pode comprar, a não ser içadas pela varanda. E quando não há varanda? Quem tem um piano em casa, mesmo pequeno, como é que faz? E olhe que piano já foi moda na família paulistana. Hoje, piano em casa só se for daqueles eletrônicos, que agora se podem até dobrar e enfiar debaixo do braço. Quem pode ter um confortável sofá de três lugares? Não entra no elevador, não faz curva nas escadas, entala nas portas, entope a sala. Em muitos prédios, sofá de três lugares só entra desmontado. Como acomodar, na “suíte do casal”, essas modernas camas-boxes king-size, tão apregoadas? O morador vai ficar dando joelhadas e caneladas pelas passagens estreitas. Há elevadores onde já não cabe uma moderna família fast-food. Neles, as pessoas que têm calos precisam tomar cuidado. Plantas decorativas entram deitadas nos apartamentos e só saem mortas. As televisões têm telas cada vez maiores e as salas são cada vez menores. É como ver cinemão na primeira fila.
Já me mudei algumas vezes, quase sempre por bons motivos. Porque saí da minha cidade, porque comprei apartamento, porque vendi, porque comprei casa, porque me separei, porque me casei… Deixei coisas para trás, por preguiça de carregar. Fui deixando pedaços de mim, que se tornaram pedaços do que fui. Sofá, onde na Copa de 70 alguém deixou cair uma brasa de cigarro e o furo ficou ali anos, contando-me a história do gol de Carlos Alberto. Toca-discos e os LPs que trouxe dos Estados Unidos em 1969 com as bandas do momento. Pôsteres da contracultura. Livros ficaram em vários endereços, de onde levei os mais estimados ou aqueles com as dedicatórias mais carinhosas. Na hora de mudar, olhava-os parafraseando Vinicius de Moraes: “Livros? Melhor não tê-los, mas, se não nos mudarmos, como sabê-lo?”. Ficaram perdidas fotos de antigas paixões, de amigos, do serviço militar, de carnavais quando eles faziam sentido, da infância das filhas, de momentos irrecuperáveis…
Terminada a trabalheira de botar tudo no seu lugar, na nova casa, resta a última chateação: comunicar a mudança de endereço. Não é pouca coisa, logo se vê: dezenas de parentes e amigos, banco número um, banco número dois, cartão de crédito de uma bandeira, de outra bandeira, corretor de aplicações, editoras, financiadora, operadora de celular, contador, INSS, IPVA, previdência privada, provedor de internet, convênio de saúde, seguradora de automóvel, assinatura de jornal, assinatura de revista, fornecedores, órgãos culturais, duas ou três assessorias de imprensa… e por aí vai.
É numa hora dessas que a gente vê como nossa vida está amarrada.