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À mesa com Camões

Por Ivan Angelo
Atualizado em 5 dez 2016, 19h06 - Publicado em 26 out 2009, 18h04

Que seria dos aventureiros dos fogões sem os livros de receitas? Aventreiros somos aqueles cozinheiros sem a obrigação diária de agradar, aqueles desprovidos da prática dos militantes e que buscam rumos nas receitas. Elas são a certeza de que não estaremos perdidos no meio da aventura. Enquanto dormem na gaveta, são nosso arquivo de desejos ou memória de bons momentos; quando as procuramos, ainda sem ter escolhido o prato, são o nosso campo de desafios; quando finalmente elegemos uma, são a antecipação de delícias. É possível salivar lendo uma receita.

Como terá sido no passado? Nos livros da An¬ti¬guidade, receitas são raridade. Fala-se de um livro na Mesopotâmia, de outro, um grego que não sobreviveu, de um romano do ano 1 depois de Cristo, de vários europeus entre os séculos XIII e XVI, uns às vezes copiando os outros, fala-se de alguns mais nos séculos seguintes, do primeiro do Brasil, no século XIX (O Cozinheiro Imperial), fala-se dos cadernos das avós e bisavós nas mais diversas culturas, até chegarmos à profusão de publicações em livros, jornais e revistas do século XX, o século das receitas. O século pop.

As receitas, ao viajar pelo mundo antigo junto com os condimentos, globalizaram sabores. Alguns, estranhos. E os nossos ancestrais brasileiros, como se alimentavam? Pistas sobre o que comiam os portugueses na época em que esbarraram no Brasil, na virada do século XV e na primeira metade do XVI, estão nos cadernos de receitas de uma princesa portuguesa dos anos de 1500 encontrados na Biblioteca de Nápoles.

Imaginemos Pedro Álvares Cabral e Pero Vaz de Caminha encontrando-se numa taverna das melhores gentes de Lisboa para um jantar, a fim de traçar planos de viagem. E, já que estamos imaginando, em outra mesa estaria Vasco da Gama divertindo-se com o dramaturgo Gil Vicente e contando-lhe histórias do caminho marítimo para as Índias. As diferenças começam na palavra jantar. A refeição do fim da manhã chamava-se jantar; a do começo da noite era a ceia; almoço era o primeiro alimento da manhã.

Cabral e Caminha dividem uma galinha albardada. A receita? Galinha temperada e assada, cortada em peças, envoltas estas em ovos batidos, fritas na manteiga, e vão fatias de pães preparadas e fritas do mes¬mo jeito, depois tudo é passado pelo açúcar com canela e servido em um prato, com esses pães (chamados ‘sopas’) por baixo, polvilhando-se por cima de tudo mais açúcar e canela. Os dois fidalgos se servem do mesmo prato, cortando a galinha com suas próprias facas e comendo com as mãos.

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Gama e Vicente já estão no segundo prato, tigelada de perdiz, que primeiro é cozida com um pedaço de toucinho, cheiros-verdes e sal, depois esquartejada, envolta em ovos batidos com açúcar, servida por cima de fatias de pão embebidas em calda de açúcar.

Açúcar na galinha? Na perdiz? Nas carnes de vaca, de porco, no toucinho? Estranho, mas Camões comia. O açúcar era uma finalização comum de vários pratos salgados e entrava na preparação de outros tantos. É o ingrediente mais citado nas receitas da princesa, reunidas no Livro de Cozinha da Infanta D. Maria. As rabanadas que conhecemos hoje como sobremesa, comuns no Natal, não tinham esse nome e iam arrumadas por baixo das carnes. Do arroz, só constam pratos doces, com leite.

Não há nenhuma referência ao alho nas 67 receitas da infanta. Estranho. Há temperos atuais, muitos levados do Oriente e do Mediterrâneo – açafrão, azeite, canela, cebola, coentro, cominho, cravo, erva-doce, gengibre, manteiga, óleo de flores, hortelã, pimenta, sal, salsa, sumo de limão, vinagre -, mas alho, não. Natural que não houvesse referência a tomate, batata, milho, feijão, peru, pimentão, amendoim, chocolate, produtos das recém-descobertas Américas, mas o alho era conhecido desde a Antiguidade. Talvez ela não gostasse. Ou o marido.

Viram? Livros de receitas, além do mais, nos levam a viajar por terras e épocas.

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