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“Há muita desinformação sobre a capacidade dos indígenas”, diz presidente da Funai

Joenia Wapichana, que veio a São Paulo para ser homenageada com a maior honraria da Alesp, afirma que seu povo pode ocupar postos de destaque

Por Sérgio Quintella Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
20 set 2024, 06h34
Joenia Wapichana: múltiplos pioneirismos
Joenia Wapichana: múltiplos pioneirismos  (Lohana Chaves/Funai/Divulgação)
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Primeira mulher indígena a assumir uma cadeira na Câmara dos Deputados (entre 2019 e 2022) e pioneira no exercício da advocacia no Brasil, Joenia Batista de Carvalho usa como sobrenome a sua etnia, a Wapichana.

Nascida na aldeia Cabeceira do Truaru, na zona rural de Boa Vista (RR), ela deixou a região aos 8 anos para estudar no centro urbano da cidade. Do ensino médio, partiu para o curso de direito na Universidade Federal de Roraima e, de lá, para o mestrado em direito internacional na Universidade do Arizona, nos Estados Unidos.

Na sexta-feira (13), Joenia recebeu o Colar de Honra ao Mérito, a principal honraria da Assembleia Legislativa paulista, não só por suas atuações no passado, mas pelo trabalho como presidente da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).

A solenidade contou com a presença do escritor Ailton Krenak, primeiro indígena membro da Academia Brasileira de Letras (ABL): “Que Makunáima (divindade dos povos de Roraima) te dê muitas flechas para você ficar forte”, afirmou. Confira a seguir a entrevista.

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A senhora foi homenageada com a maior honraria da Alesp, por sua trajetória e também por sua atuação junto aos povos originários. Como a pequena Joenia, que deixou aos 8 anos a aldeia em que vivia, se tornou a primeira advogada, deputada federal e presidente da Funai indígena?

Foi muito difícil. É sempre uma honra estar em espaços nunca antes ocupados por povos indígenas. Por isso optei por me identificar como Joenia Wapichana, para poder mostrar que somos capazes de falar por nós mesmos e buscar soluções para nossos problemas. Rompi muitos desafios dentro do nosso próprio estado. As pessoas sempre nos viram como incapazes, inferiores, apenas com condições de assumir cargos mais baixos, como os domésticos. Até hoje, quando as mulheres de minha aldeia vão para Boa Vista estudar, elas servem como domésticas. Mas eu rompi uma grande barreira e mostrei que estamos preparados para ocupar os espaços.

Seu pioneirismo e sua posição atual foram capazes de incentivar outros indígenas a seguir o mesmo caminho? Em outras palavras, existem outras “Joenias”?

Sabe que sim? Meu nome inspirou várias mães em meu estado a batizar suas filhas como Joenia. Mas, no sentido da sua pergunta, hoje vejo as “Joenias” fazendo faculdade de direito, querendo ser advogadas. Isso reforça a existência de um exemplo de inspiração.

Uma das principais demandas dos povos indígenas é a segurança da terra, seja na Amazônia, seja nas aldeias em regiões urbanas. Recentemente, o presidente Lula reconheceu dois territórios, na Bahia e em Mato Grosso, mas o anúncio foi aquém do esperado e gerou críticas de lideranças. Qual o tamanho da fila para a demarcação de terras no país?

Temos 148 grupos de estudos em andamento, mas não dá para falar em tamanho de fila. São estudos minuciosos em campo, feitos a partir de laudos técnicos antropológicos. Uma demarcação tem etapas que não dependem da Funai. Nossa ação se inicia com os grupos, mas logo nessa etapa começam a aparecer os primeiros questionamentos jurídicos. Depois, quando o processo vai para o Ministério da Justiça, os questionamentos aumentam e a demora só faz aumentar os conflitos.

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A Região Metropolitana de São Paulo possui muitas aldeias, mas elas não se integram às cidades, apesar de seus habitantes frequentarem as áreas de fora de seu território. Há exemplos em todo o Brasil também. Eles andam de ônibus, vão aos mercados, assistem a jogos de futebol. É possível haver uma integração entre os povos e mesmo assim manter preservados os costumes e a ancestralidade dos indígenas?

A questão não é de integração, mas de relação intercultural. Os povos indígenas têm existência originária, mantêm a identidade, a cultura, apesar de terem adquirido aspectos diferentes com o acesso à tecnologia. Muitos povos falam a língua portuguesa e não deixaram de ser indígenas, nem deixarão. A relação com a terra continua forte. Eu posso muito bem ter o conhecimento que você tem, acessar a mesma tecnologia e estar no mesmo espaço, sem deixar de ser indígena. Eu sei quem eu sou. Conheço vários povos que convivem entre si.

Isso também vale para a educação?

É possível, sim, desde que haja uma orientação sobre como as coisas funcionam. A tecnologia pode ser usada para o bem e o mal e ainda estamos discutindo os impactos futuros.

Finalmente a terminologia “povos indígenas” substituiu o termo “índio”, após séculos de utilização. A mudança na nomenclatura foi o suficiente para acabar com estigmas e preconceitos?

Não foi, mas pelo menos há um apoio da legislação e o reconhecimento de que formamos uma diversidade. Somos 305 povos, falamos 274 línguas, há um grande diferencial na cultura. Mas mesmo que a mudança de termos não tenha sido suficiente, é um avanço, e vamos educando quem não conhece a nossa história.

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Dos onze mantos tupinambás existentes mundo afora, só um retornou ao Brasil, na semana passada. Quando receberemos de volta os demais mantos levados há séculos?

A gente está iniciando os programas. O Ministério dos Povos Indígenas tem feito a articulação política para essa repatriação. Mas temos outras demandas parecidas. Para o Museu do Índio (no Rio de Janeiro), que vai se chamar Museu dos Povos Indígenas, estamos acompanhando também a recuperação de peças de um museu na França que retornaram ao Brasil recentemente.

Que peças são essas?

São peças que estavam retidas no Museu de História Natural de Lille, na França. Imagina ter sua arte, sua identidade, sua cultura sendo levadas para fora do país. Com a volta dos objetos, muitos povos que não tiveram uma referência poderão tê-la e ainda receber tudo que é seu de volta. É uma devolução de direitos.

Publicado em VEJA São Paulo de 20 de setembro de 2024, edição nº 2911.

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