Na hora vizinha da meia-noite, o vento gelado na rua parecia ter suspendido as atividades humanas e seus ruídos: passos, vozes, música de um rádio alto num carro, tosse, limpeza pública.
O homem, lendo um romance policial dentro do seu apartamento aquecido, deu-se conta de repente daquele silêncio e pensou: deve ter esfriado, a rua está tão quieta. As pessoas, como as baratas, se escondem no frio – escreveu num bloquinho de anotações que tinha sempre ao lado. Não gostava de ter idéias e perdê-las.
Abriu sua porta-balcão e saiu no terraço para sentir a temperatura e olhar a rua. O tempo esfriou mesmo, pensou, deve estar fazendo uns 10 graus ou menos. Esfregou as mãos para gerar calor e já ia voltando para o conforto da sala quando viu, no 1º andar do prédio em frente, algo que o fez parar, atento e alarmado.
Um homem havia saltado de uma das janelas iluminadas do apartamento para a marquise. Usava boné escuro e vestia um colete preto, com letras amarelas que não se podiam ler dali, parecia Polícia Federal. Pela outra janela, fechada e iluminada, viam-se dois cães latindo, talvez presos. O homem de colete se esgueirou na marquise e ficou num canto – protegido ou escondido? – fumando.
Um ladrão?
Morador fugindo do ladrão?
Um amante em fuga, escondendo-se do marido que voltara de surpresa?
Um agente da Polícia Federal, quase surpreendido quando instalava microfones secretos para a operação Frio na Espinha?
As hipóteses passaram rápido pela cabeça do homem no terraço e ele correu ao interfone, ansioso para saber do seu porteiro se estava vendo o que se passava no 1º andar do edifício em frente. O porteiro disse que não, que não olhava janelas. O homem pediu-lhe que olhasse e o avisasse se visse algo suspeito. “Como assim?”, perguntou o porteiro. O homem só falou “Avisa!”, e correu para o terraço. Ao passar pela sala pensou em anotar no bloquinho: porteiros não sabem lidar com hipóteses que não sejam pacotes – mas apressou-se para o terraço.
O homem do colete não estava mais na marquise! A janela fora fechada, as luzes continuavam acesas.
Deve ter pulado para a rua, imaginou, 3 metros, moleza para um atleta da Polícia Federal. Olhou: ninguém na rua, só o frio. Ou então, pensou, ele entrou de novo pela janela, matou o marido traído e saiu tranqüilo pela portaria, pois porteiros não lidam com hipóteses, especialmente quando disfarçadas de Polícia Federal. Acordou várias vezes naquela noite, interrogando o silêncio.
De manhã, ninguém do seu prédio sabia de nada, nem tinha visto algo estranho. Pensou, conformado: daqui a uns dias vão ver na televisão um vizinho bambambã algemado, preso na operação Frio na Espinha, e vão dizer: ah, então era isso – lamentando não ter visto. Anotou no seu bloquinho: o passado é um prato que se come frio.
Conferiu o local da cena insólita nas noites seguintes, sem que ela se repetisse. Hipótese: o equipamento espião já estaria plantado, à espera de resultados.
Quatro dias depois, pela manhã, foi ao terraço de roupão a fim de sentir a temperatura, decidir qual roupa deveria vestir para sair. Estava friíssimo. Olhou para a marquise e lá estava o homem! De colete da Polícia Federal, boné, e fumando.
Havia uma diferença fundamental: estava sentado, balançando as pernas penduradas sobre a calçada, despreocupado. Apenas um homem sentado fumando.
Provavelmente a mãe do sujeito, o pai, o avô com bronquite, a mulher, as crianças, os cachorros, alguém ou todos, não suportavam a fumaça de cigarro e o homem acuado transformara a marquise em fumódromo particular. Mais prático do que descer até a rua. Colete e boné para se proteger do frio.
Não seria mais simples não fumar? – pensou o homem no terraço, olhando o céu cinza.
Fumantes são enigmas, anotou no seu bloquinho.