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Foi engano

Por Ivan Angelo
Atualizado em 5 dez 2016, 18h02 - Publicado em 3 jun 2011, 18h19

O telefone tocou numa hora em que ele não costumava receber telefonemas, passava das 10 da noite. Pronto para sair, atendeu preferindo que fosse engano. Demorou um pouquinho para falar e uma voz feminina, ansiosa, sussurrou antecipando- se:

— Alô? É você?

Ia questionar — “você quem?” —, mas se conteve, porque o espírito brincalhão que às vezes o dominava enxergou a possibilidade de aprontar uma. (Mais tarde, ao tentar diminuir sua culpa por algum possível estrago em uma relação, explicaria: “Ora, eu sou eu, não sou? Então não falei nenhuma mentira na minha resposta”.) O fato de a voz vir sussurrada criou um tom de coisa escondida que estimulou aquele seu lado adolescente. Sussurrou de volta:

— É, sou eu.

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Vozes sussurradas criam cumplicidade e intimidade. Não se pode dizer que ele tivesse disfarçado a voz de propósito. Mesmo porque do lado de lá não estava ninguém que ele conhecesse. Se tivesse a intenção de disfarçar a voz, imitando alguém com o objetivo de enganar, nem saberia a quem imitar, claro. Pode ser que, assim sussurradas, certas vozes se pareçam. O fato é que, do lado de lá, a voz gostosinha, sim, percebeu-a então como gostosinha, entregou confiante uma confissão, entre sussurrada e excitada:

— Ai, estou morrendo de saudade.

Pensou em cortar a conversa, dizendo “olha, você ligou para o número errado”, mas aquele lado adolescente não deixou. Ardiloso, ia dizer “eu também” quando, num sussurro ainda mais baixo, ela emendou:

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— Morrendo de outra coisa também.

Não sacou na hora:

— Outra coisa?

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— É… Uuuuiii… Entendeu?

Entendeu, um pouco escandalizado.

— Entendi. — E acrescentou, para apimentar um pouco a relação: — Eu também.

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— Ela está aí?

Epa! Ela quem? Não havia “ela”. Mas a pergunta tinha sua lógica: se ele sussurrava era porque uma esposa/ amante/namorada deveria estar por perto; e ela sussurrava porque “alguém” poderia ouvir. Antes que pudesse responder, a confirmação veio sussurrada e rápida:

— Não venha hoje. Ele voltou.

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Clique. Teve a sensação de ter perdido algo ao ouvir aquele clique. Algo que não tinha, que nem era dele, mas que sentiu como perda. Jamais saberia quem havia ligado, não tinha registro de chamadas na sua linha telefônica. Fantasiou que ela poderia ligar de novo, enganos acontecem mais de uma vez, um raio pode cair duas vezes no mesmo lugar. Essas coisas.

Passou alguns dias sem sair de casa à noite, trabalhando em projetos que precisava terminar. A grande cidade se mexia lá embaixo, luzindo possibilidades. Suspeitou — e só de suspeitar irritou-se consigo, com aquele ser lotérico que habitava uns cantos da sua cabeça —, suspeitou que estava usando o trabalho em casa como desculpa para estar ao alcance de um telefonema improvável, vindo de ninguém, para outra pessoa. Pôs um fim naquilo, saiu para a rua. Na grande cidade, quem é enturmado sabe para onde ir.

Dias depois, havia acabado de tomar banho para sair quando o telefone tocou. Atendeu e uma voz clara e bem-disposta falou:

— Pode vir. Ele viajou.

Clique. Não sabia para onde ir. Não sabia para quem ligar, como desfazer o engano. Ela nunca mais ligou. Imagina que ela, magoada, nunca mais procurou o homem para quem pensava estar ligando.

e-mail: ivan@abril.com.br

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