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Doutores da alegria tem orçamento cada vez maior e atendem mais crianças

Com 58 palhaços profissionais e um orçamento de 5 milhões de reais, os Doutores da Alegria confortam e divertem 78 000 crianças doentes por ano

Por Da Redação
Atualizado em 6 dez 2016, 09h05 - Publicado em 18 set 2009, 20h31

Fazia uma semana que Gustavo Castanho Parra, de 8 anos, havia chegado ao Hospital do Mandaqui, na Zona Norte. Fora atropelado por uma moto enquanto atravessava a Avenida Inajar de Souza, na Vila Nova Cachoeirinha. Fraturou as duas pernas, um braço e algumas costelas. Tinha gesso e curativos por todo o corpo. Estava quase dormindo quando três palhaços entraram no quarto ocupado por ele, por outras sete crianças e suas mães. Fernando Paz, codinome Doutor Montanha (altura inferior a 1,60 metro), dedilhava o violão. Juliana Balsalobre (Doutora Bifi) e Luciana Viacava (Doutora Lola Brígida) cantavam: “Qui qui qui qui qui qui. Cadê? Ó nóis aqui! Os Acadêmicos do Mandaqui”. O trio de palhaços fica cerca de dez minutos em cada leito e muda a brincadeira de acordo com o paciente – o mote pode ser um desenho, as estripulias de um super-herói ou os bonecos sobre a cama. Escrito em uma folha de papel grudada na parede, o nome de Gustavo foi a deixa para Doutor Montanha:

– Gustavo Borges! O que aconteceu com você?

– Ele escorregou na piscina – respondeu Doutora Bifi.

– Foi nadar na poça d’água, é?

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A brincadeira levou às gargalhadas o menino e sua mãe, a operadora de telemarketing Cláudia Castanho Parra.

Essa cena resume o método dos Doutores da Alegria, que se baseia em três características: delicadeza (para entrar na intimidade de um quarto sem assustar ninguém), constância (cada hospital recebe uma dupla ou trio de palhaços ao longo de um ano, duas vezes por semana, sempre no mesmo horário) e permissão (a criança pode aceitar ou recusar a visita). O Mandaqui é um dos oito hospitais paulistanos freqüentados pelos Doutores da Alegria. Apenas dois são particulares, o Nossa Senhora de Lourdes e o Santa Marcelina. Eles atuam também no Rio de Janeiro, Recife e Belo Horizonte. Fundado em 1991, o grupo transformou-se em uma empresa saudável, que cresce ano após ano. Em 2007, os Doutores visitaram 78 285 crianças doentes (21% a mais que no ano anterior). Contaram com um orçamento estimado em 5 milhões de reais. É menos do que a receita de outras entidades que trabalham em prol de crianças, como a Fundação Abrinq (14 milhões de reais em 2006) e o Grupo de Apoio ao Adolescente e à Criança com Câncer (35 milhões de reais em 2005). Mas, no universo das 276.000 fundações privadas e associações sem fins lucrativos do Brasil, os Doutores da Alegria têm um perfil diferenciado. Ninguém ali é voluntário. Os 58 palhaços da trupe são atores que recebem salário (2 400 reais, em média, por três dias de trabalho, um deles dedicado ao aprendizado de novas técnicas), assim como os vinte profissionais que trabalham na administração do negócio. De acordo com uma pesquisa realizada pelo IBGE em parceria com o Ipea, em 2002, os Doutores da Alegria figuram entre as cerca de 2 500 fundações e associações (ou menos de 1%) que empregam de cinqüenta a 99 pessoas (77% das fundações e associações sem fins lucrativos não têm nenhum funcionário assalariado).

Atualmente, a trupe tenta expandir os horizontes e ampliar as atividades para além dos limites dos hospitais. Nessa linha, a principal novidade está prevista para abril: a sede da empresa, em Pinheiros, deverá abrigar uma escola de palhaços, aberta aos interessados. No ano passado, surgiu o Palhaços em Rede, programa que oferece formação gratuita a associações que atuam em hospitais de todo o país, inspiradas nos Doutores. Há perto de 200 grupos desse tipo. Ainda em 2007, os Doutores da Alegria inventaram dois novos produtos. Um deles são os Poemas Esparadrápicos, um rolo com catorze poesias adesivas, à venda no site https://www.doutoresdaalegria.org.br por 18 reais. Outro é o Riso 9000, em que palhaços visitam empresas para fazer alguns esquetes. “Quem perdeu essa cueca?”, pergunta um deles, ao exibir a todos uma samba-canção estampada com coraçõezinhos. “Você anda engolindo muito sapo por aqui? Quer dar nome aos sapos?”, indaga outro. O objetivo é melhorar o astral dos funcionários e a arrecadação da ONG.

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“A estratégia de gestão do grupo é a criatividade. Com ela, os Doutores arrecadam fundos, fazem peças de teatro, vendem livros…”, explica o médico Paulo Roberto Pereira, diretor da Amana-Key, uma consultoria da área de administração, e presidente do conselho dos Doutores da Alegria. Pereira era diretor executivo do Instituto da Criança do Hospital das Clínicas quando tiveram início as visitas. “No começo, pensei que era um showzinho”, lembra. “Aí percebi que se tratava de um trabalho sério, que ajuda não só as crianças mas também os médicos.” Para Pereira, muitos profissionais da saúde aprendem com os palhaços maneiras de se aproximar dos pequenos doentes. Depois de acompanhá-los durante um ano no Hospital Universitário da USP, no Butantã, o médico Ariel Levy, residente em pediatria, percebeu os efeitos das palhaçadas. “As crianças ficam animadas e se sentem mais em casa”, diz. “O hospital se torna uma casona.”

A história dos Doutores da Alegria começou em 1991. Ao fim de uma temporada em Nova York, onde atuou na Broadway e em um dos primeiros programas do mundo a colocar palhaços em hospitais, o Clown Care Unit, o ator Wellington Nogueira voltou a São Paulo para cuidar de seu pai, internado no Hospital da Clínicas. Um dia, meio sem compromisso, ele colocou o nariz vermelho e partiu para o Instituto da Criança. Não parou mais. Hoje é o coordenador-geral do grupo – e passa a maior parte do tempo de “cara limpa”, sentado à mesa de seu escritório. “Reservo a maquiagem e os sapatos extragrandes para ocasiões especiais, como o meu aniversário”, diz ele. Além de atuar na Broadway, Nogueira emprestou sua voz ao filme de animação Garoto Cósmico, atualmente em cartaz, e participou dos longas Avassaladoras e Alô, ambos dirigidos por Mara Mourão, sua mulher há quinze anos. Mara é autora do documentário sobre a trupe, que conquistou prêmios em Nova York, Gramado e Monterrey. “Sempre achei que os Doutores dariam um filme”, conta Mara, que vestiu as câmeras com bichinhos de pelúcia para deixar as crianças à vontade durante as cenas. “Wellington foi muito generoso e não quis controlar nada.”

No início da década de 1990, pouco se falava da necessidade de humanizar o tratamento de doentes em hospitais. Os Dou-tores da Alegria inovaram ao chamar atenção para o fato e ao realizar suas intervenções de maneira profissional. “Antes de nós, palhaços como o Arrelia já visitavam crianças doentes”, afirma Soraya Saide, a Doutora Sirena, responsável pela formação de novos Doutores. “A diferença é que se tratava de algo esporádico, e nós estamos nos hospitais toda semana.” Sempre que surge uma vaga, cerca de 250 pessoas se inscrevem. Para participar da seleção, é necessário ser ator e ter experiência como palhaço. O processo, de três etapas e um ano de duração, começa com a avaliação dos currículos e das cartas de apresentação. Em seguida, os candidatos passam por oficinas em que improvisam com os colegas. A terceira fase do teste se dá no hospital, onde o futuro Doutor sente o clima e prepara seu personagem – cada um deve ter identidade e talentos próprios. Os escolhidos passam, então, por um ano de formação.

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Sandro Pontes, 20 anos, é o mais novo deles. Recebeu o título de Doutor Sandoval no início de 2007 e ficou um ano como “residente” no Hospital Universitário. Na “cerimônia de formatura”, em dezembro, algumas das funcionárias o presentearam com um bolo e um boneco, que agora enfeita seu jaleco. “Nosso foco é a criança, mas trabalhamos com os pais, acompanhantes e funcionários que encontramos pelo caminho”, diz. A exemplo dos médicos residentes, novatos como ele vivenciam momentos difíceis. “Em novembro, visitamos dois irmãos com catapora grave”, relata Sandoval. “Quando voltamos na semana seguinte, vi só um e pensei que o outro tinha recebido alta.” Foi o menino que deu a notícia: “Meu irmão foi para o céu”. Nessas horas, os Doutores costumam dar um tempo na brincadeira, sair do quarto e tentar se recompor. Não existe uma regra única que determine como agir diante da morte. Os palhaços visitam pacientes terminais e bebês na UTI. Às vezes, chegam a presenciar os últimos instantes de vida. Não fazem graça. Podem colocar uma caixinha de música para tocar e assoprar bolhas de sabão. Ou então cantarolar bem baixinho.

É impossível medir se as intervenções dos besteirologistas, como eles se denominam, contribuem para o tratamento dos pacientes infantis. Mas é sabido que o riso influi positivamente no sistema imunológico. “Falamos que quando a criança começa a sorrir é porque está salva”, afirma Yassuhiko Okay, vice-diretor-geral da Fundação Faculdade de Medicina, ligada à USP. “Quando arranco uma risada, sinto que venci”, diz Doutor Sandoval. Uma de suas vitórias recentes foi no Pronto-Socorro do Hospital Universitário, onde estabeleceu um diálogo divertido com William Rodrigues, de 4 anos, vítima de uma crise convulsiva. “Isso aí no seu braço é para soltar as teias, homem-aranha?”, perguntou Sandoval a William, referindo-se ao tubo de soro preso a seu pulso. O menino, que parecia introvertido, respondeu que sim. E saiu espalhando teias e sorrisos pelo PS.

Onde os palhaços se apresentam

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Hospitais paulistanos que recebem as visitas dos Doutores da Alegria

• Conjunto Hospitalar do Mandaqui

• Hospital da Criança do Grupo Nossa Senhora de Lourdes

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• Hospital Geral do Grajaú

• Hospital Municipal de Campo Limpo

• Hospital Santa Marcelina

• Hospital Universitário da USP

• Instituto da Criança do Hospital das Clínicas

• Instituto de Tratamento do Câncer Infantil

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