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Diário dos sem-quarentena: “não dá pra parar”, diz motorista de aplicativo

"Teve um dia em que resolvi trabalhar vestido como se fosse um astronauta, e as pessoas não acharam estranho", conta Marlon Luz, que tem canal no YouTube

Por Marlon Luz, em depoimento a Saulo Yassuda
Atualizado em 17 abr 2020, 11h52 - Publicado em 17 abr 2020, 06h01

“Parei de trabalhar nos primeiros dias de quarentena. Sendo bem sincero, tenho pouco medo do coronavírus, sou daqueles que acham que nunca vão pegar a doença. Considero minha saúde muito boa. Ainda bem que a gente tem esposa, que nos traz para a realidade. A minha mulher, que também é Uber, trabalhou até 12 de março. Pediu que eu ficasse em casa e até fiquei, mas, lá pelo dia 26, 27, voltei a trabalhar. Sou um cara que não consegue ficar parado e também tenho um canal no YouTube que precisa de conteúdo. Nos vídeos, mostro pros motoristas o que está acontecendo. Por isso, preciso dirigir e entender a situação. Tenho uma motinho e tentei, antes de voltar a pegar passageiros, fazer entregas de comida e ração de animais. É uma alternativa, mas se ganha menos. No meu retorno ao trabalho, minha mulher, a Elke, ficou com medo. Mandava eu tirar logo a roupa. Dizia: ‘Toma banho! Depois a gente conversa!’.

Marlon Luz, motorista de aplicativo (Divulgação/Divulgação)

Sou gaúcho, morávamos em Manaus e viemos para São Paulo em 2014, quando fui trabalhar em uma empresa de tecnologia. Eu me cadastrei no Uber e fazia corridas de vez em quando. Em 2016, acabei sendo demitido, com a crise, e foi aí que comecei a trabalhar de vez como motorista e lancei o canal. Dá para tirar, por mês, uns 6 000 reais pelos aplicativos, além do que ganho com o YouTube. Motoristas mais experientes conseguem até 7 000 mensais. Mas esse valor não é livre, não — 25% vão para combustível e manutenção. Os menos experientes, que não conhecem os lugares com mais procura, ganham 4 000 por sessenta horas semanais. Quem tem carro alugado é pior ainda. Em geral, usar só uma plataforma dá mais lucro, mas nesta época é melhor trabalhar com todas ligadas. A demanda diminuiu uns 70%, e eu diria que os ganhos caíram ao meio. Mais da metade dos motoristas não está trabalhando e não tem renda. São autônomos se endividando.

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Percebi que nestes últimos tempos há horários em que dá para ganhar bem, como de manhã cedinho, às 5 horas, e no no fim da tarde de sexta. Em outros, o celular quase não toca, tipo meio-dia. Antes, toda hora tinha corrida, hoje tem gente que fica esperando uma, duas horas por um chamado. Os hospitais são um bom lugar atualmente para pegar passageiro, sempre tem corrida, é uma estratégia que tive em alguns dias. Muitos motoristas não estão trabalhando porque têm medo do vírus e de levar a doença para dentro de casa, por morar com gente em situação de risco. Uso máscara de vez em quando enquanto trabalho. Elogiam quando uso, mas não reclamam se estou sem. E deixo os vidros abertos. Os passageiros têm pedido, ninguém quer mais usar ar-condicionado. E limpo o carro, isso é muito importante. Passo desinfetante no banco e onde o passageiro toca. Estou toda hora passando álcool em gel nas mãos e no volante, ainda mais quando pego em dinheiro. Tenho um frasco na frente e um atrás, pro passageiro. Esse excesso de cuidado com tudo às vezes cansa. A gente pensa: ‘Puxa! Pus o dedo no nariz…’. Teve um dia em que resolvi trabalhar vestido como se fosse um astronauta, comprei uma roupa especial numa loja de construção, foi baratinha, e, por mais que eu estivesse todo coberto, as pessoas não acharam estranho e até me elogiavam. Mas acho que não trabalharia assim. Alguns motoristas têm colado plástico e fita adesiva para ficar isolados. Tem uns que investem mais e colocam acrílico.

No início, estava achando os passageiros muito chatos, reclamavam dos vidros fechados e diziam que estávamos demorando pra buscá-los, mas havia poucos carros. Muitos motoristas chegaram a ter nota baixa por isso. Com o agravamento da pandemia, os clientes passaram a nos ver como a salvação. Se não estivéssemos na rua, eles não teriam como se locomover. Falam ‘parabéns’, principalmente as enfermeiras e os médicos saindo e indo aos hospitais. Caiu a ficha de que somos peça fundamental. Na periferia, tem mais demanda que nas zonas mais ricas, antes era mais equilibrado. O pessoal mais pobre liga pro risco de sair de casa, mas não tem escolha, geralmente é pra trabalhar ou visitar alguém no hospital. Peguei também muitas cuidadoras de idosos, que moram nas áreas mais pobres. Algumas plataformas têm feito algo para ajudar motoristas que adoecem ou pertencem a um grupo de risco. Eu estou bem. Gosto de trabalhar entre 16, 17 até as 22 horas. Dependendo do dia, estendo até meia-noite, 1 hora. Moro na Vila Mariana, ligo o app de casa e vou para onde terá corrida. Em dias normais, minha esposa levava os dois filhos à escola de manhã e saía para fazer as corridas, mas agora os três estão em quarentena. Os moleques gostam de ficar em casa, não querem sair pra nada, nem pra ir ao supermercado.”

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Publicado em VEJA SÃO PAULO de 22 de abril de 2020, edição nº 2683.

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