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A gente esteriliza tudo, mas tem gente que quer abraçar, diz frentista

Diário dos sem-quarentena: nos dias de folga, Kellen Flores estuda para entrar em medicina. “Serei a frentista que virou médica”, sonha

Por Kellen Flores, 29, frentista em um posto de combustíveis em São Bernardo do Campo, em depoimento a Sérgio Quintella
Atualizado em 24 abr 2020, 13h00 - Publicado em 24 abr 2020, 06h00

“No início da quarentena, quando foi falado para todo mundo ficar em casa, o movimento no posto caiu radicalmente. Mas depois da Semana Santa os clientes voltaram a abastecer com mais frequência. Percebo que a maioria dos motoristas usa o carro para trabalhar. A maioria é de aplicativos. Por outro lado, uma categoria que sumiu do posto foi a dos taxistas. Um deles veio outro dia aqui e contou que está valendo mais a pena trabalhar com o Uber. Disse que ficava rodando o dia todo e não aparecia nenhum passageiro. Se antes do coronavírus paravam para abastecer até noventa carros por hora, em períodos de pico, hoje esse número não chega a trinta. Agora mesmo era para o local estar cheio, mas tem só um veículo nas cinco bombas.

Até março eu trabalhava todos os dias, das 6h às 14h, e folgava uma vez por semana. Eu saí de férias por quinze dias e retornei na semana retrasada. Agora, com a redução da nossa jornada, trabalho doze horas diárias, dia sim, dia não. Outra mudança foi na forma como nos protegemos do coronavírus. Além de passarmos a utilizar o álcool em gel, usamos máscaras o tempo todo. No primeiro dia eu senti falta de ar, fiquei sufocada e com calor, mas no dia seguinte já havia me acostumado. O receio de pegar a doença faz a gente se acostumar rapidinho. Lavamos a mão o tempo todo e precisamos esterilizar tudo o que pode ser contaminado, como mangueiras, máquinas de cartão, impressora, mouse, teclado, bombas, calibrador. Tem de passar álcool em tudo.

Enquanto a gente se previne e deixa tudo limpo para os clientes, tem gente que chega querendo dar a mão, abraçar, dar beijo, falar bem pertinho do rosto. Eu digo que é só pezinho e cotovelo, nada de contato físico. Embora muitos façam questão de manter distância, há pessoas que não acreditam na doença e falam que tudo isso é frescura, besteira. Mas não é.

Como tenho mais tempo de folga agora, aproveito para estudar, ver séries na Netflix e escrever. Antes da pandemia eu já não era muito de sair de casa, então nesse ponto eu não senti muita diferença. Embora minha timidez faça com que eu não seja muito boa para conversar, acho que sou boa com as palavras. Estou escrevendo um livro de ficção científica chamado Jussana e o Terrestre, que conta a história de uma alienígena que não tem sentimentos. No entanto, ocorre um acidente, ela cai na Terra e é forçada a fazer amizade com um menino caipira do Pantanal, onde eu nasci. Ela começa a perceber que tem sensibilidade e ambos passam a se conhecer. Ainda não acabei a história, pois vou publicando um capítulo por semana (na plataforma Wattpad). Além disso, faço um cursinho on-line para tentar entrar em uma faculdade de medicina. A quarentena tem me ajudado a estudar mais. Esse é meu grande sonho. Tentei no ano passado, fui aprovada em outros cursos, mas não no que eu queria. Sei que vou conseguir. Serei a frentista que virou médica.

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Eu trabalho em postos de combustíveis desde que cheguei a São Paulo, há oito anos, vinda de Corumbá, em Mato Grosso do Sul. Trabalhei em uma rede por três anos e depois fui transferida para outra unidade, para trabalhar na loja de conveniência. Estou nesse posto em São Bernardo do Campo há um ano. O meu plano era pegar férias a partir de julho e visitar minha mãe e minha irmã, que ficaram em Corumbá, mas por causa do coronavírus isso não será possível agora. Eu nasci lá, em 1990. Fui criada no Pantanal, no meio do mato. Falo com as duas quase todo dia, mas tem de ser por ligação, pois minha mãe não sabe ler nem escrever. A minha cidade natal faz divisa com Puerto Quijarro, na Bolívia, onde morei quando pequena. O Rio Paraguai separa os dois países. Agora só poderei matar a saudade de casa no ano que vem, mas não penso em ficar lá para sempre, não. Em Corumbá não tem oportunidades de trabalho, apesar de ser um lugar lindo demais. Aqui em São Paulo eu gosto de ir ao Riacho Grande (em São Bernardo do Campo). Ali lembra muito a minha cidade. Aquela represa enorme, as árvores.

Nessas horas de pandemia e incertezas é importante agradecer aos grupos de trabalhadores que estão nas ruas. Médicos, garis, motoboys, motoristas, policiais e, claro, nós, frentistas. Todos estamos fazendo o possível para manter o Brasil girando. Estamos de máscara, alegres e sorrindo, ou tristes e disfarçando nossos medos, mas mantemos a cidade limpa, o café quente, os veículos abastecidos e principalmente as vidas salvas.”

Publicado em VEJA SÃO PAULO de 29 de abril de 2020, edição nº 2684.

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