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Crônica: O pirata das colinas

Por Da Redação
Atualizado em 5 dez 2016, 19h00 - Publicado em 15 jan 2010, 15h03

Verão. Tempo de biquínis. Deitados ou recostados nas espreguiçadeiras dispostas em volta da piscina do condomínio, nas colinas das Perdizes, há moças, lindas umas e outras menos, exibindo consistências; rapazes, uns estudando atitudes, os mais novos se empurrando ruidosos; damas, ousando as que podem ousar; homens afagando a própria barriga, uns contemplativos, outros atentos à leitura, alguns sonolentos.

Dois prédios do condomínio ficam de frente para a piscina. Entre esta e a paisagem externa, para lá das espreguiçadeiras, um sinuoso jardim margeia as grades, formado por buganvílias, folhagens, azaleias, jasmins e coqueirinhos. Pássaros piam vizinhos; raras borboletas degustam aromas.

Na tardezinha de janeiro, um homem avisou à esposa, uma das que podiam ousar:

— Se cuide que tem alguém de luneta olhando para cá.

Deitada de costas, ela se conferiu, mas argumentou:

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— Qual o problema? Não tem nada de fora.

Ele deu de ombros e beiços, como costumam fazer os maridos das que ousam. O assunto teria morrido se, dias depois, ela não comentasse no elevador com uma vizinha:

— Diz que tem um homem que fica olhando a gente de binóculo na piscina.

— Ah, sempre tem.

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— Binóculo não. Luneta!

— Luneta?!

— É, daquelas de pirata. Focaliza até brotoeja!

Combinaram observar, no sábado. O marido não soube dizer o andar; era o prédio da direita. De manhã elas se recostaram lado a lado nas espreguiçadeiras, como se apenas tomassem sol, e espiaram apartamento por apartamento.

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— Achei! Ali, no quinto. Conta, de baixo para cima, um, dois, três, quatro, cinco. Aquele, com as folhagens. Atrás das folhagens, não é uma luneta?

Parece; parece, não, é certeza; tanta folhagem, não dá para ver direito; não vê a luneta?; a luneta vejo, mas não tem ninguém atrás; não quer dizer nada; isso é; e tem mais: está apontada para cá; vamos ver se aparece alguém.

Esgotaram a manhã, desistiram, mas voltaram para pegar o solzinho da tarde. E então:

— Olha lá ele! Que sem-vergonha!

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Sentado atrás da luneta e dos arbustos da sala envidraçada havia um homem. As duas contaram a outras duas e outras duas a outras duas. Indignação, protestos. Alguém conhecia as pessoas daquele apartamento? Ali na rodinha, ninguém. Enquanto permutavam “onde é que já se viu” e “merece uns tapas”, a pessoa sumiu, abaixada, como se deslizasse.

Passaram a ensolarada semana ativas e telefônicas combinando uma reação. Os maridos não entraram na onda, preguiça daquilo. Intocado pela polêmica, o observador furtivo prosseguia na sua atividade. Uma das vaidosas até gostava da sensação de ser observada, voltava para casa procurando beijos. As indignadas mais aguerridas, entre elas algumas que tinham filhas em idade propícia para contemplações, formaram um pequeno grupo para abalroar a nave do pirata.

No sábado, assim que viram o homem atrás da luneta, elas vestiram seus shorts, enrolaram-se em seus panos e foram lá. Atendeu-as um senhor numa cadeira de rodas motorizada. Elas se entreolharam, perderam o pique do ataque, espicharam olhares, uma teve a presença de espírito de dizer que o viam sempre solitário, olhando pela luneta, vieram fazer uma visita.

Ele contou:

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— Depois que sofri o acidente, virei birdwatcher. Sabe o que é? Observador de pássaros. É bacana, existe no mundo inteiro. Eu sou filiado a uma associação nos Estados Unidos, a gente troca informações, fotos… Tem uma mamãe bem-te-vi cuidando dos filhotinhos no ninho bem ali na buganvília, na curva do jardim, escondidinho entre os galhos trançados. Não repararam? Ó que graça.

Uma olhou pela luneta, e logo outras, e exclamaram, e relaxaram, e ficaram à vontade, e as falas delas se sobrepunham:

— Que amor! Que graça! Que fofos! Que hobby mais bacaninha! Imagine, tinha gente achando que o senhor estava olhando as meninas na piscina. Imagine, um senhor tão distinto.

Depois que as visitas se despediram, ele voltou da porta murmurando:

— Não é que elas me deram uma boa ideia?

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