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“Corremos um sério risco de esvaziar a vida urbana”, avalia Nabil Bonduki

Para o urbanista, se São Paulo não repensar o seu planejamento, pode passar pelo mesmo processo de degradação que afetou Detroit

Por Clayton Freitas
24 jun 2022, 06h00

Na concepção de Nabil Bonduki, 67 anos, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, a capital vive um processo de esvaziamento. Por um lado, ele credita parte disso à ausência de um melhor planejamento, que impacta diretamente no modo de viver na metrópole. Por outro, o que ele considera resistência por parte do mercado imobiliário em fazer bons projetos que dialoguem com a cidade e venham a estimular a mistura de classes. “São Paulo pode virar uma Detroit daqui a pouco”, diz.

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Relator do Plano Diretor Estratégico quando era vereador pelo PT, Bonduki se refere à cidade dos EUA que foi à bancarrota após a fuga das indústrias. Na entrevista a seguir, ele comenta a expansão imobiliária na capital, os impactos gerados pela pandemia e como isso está interferindo no modo de viver na cidade.

A necessidade de criar mais habitações pode trazer o risco de ampliar a área urbanizada?

Não é um risco, isso já está acontecendo de várias maneiras. A mais grave de todas é o processo de ocupação de mananciais. Ocupações ilegais que têm inclusive a suspeita de participação do crime organizado, que ocupa a terra para vender lote. E outra situação grave é a ocupação ao norte da Serra da Cantareira. Isso é insustentável do ponto de vista ambiental.

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Como o senhor vê a forte expansão do mercado imobiliário na cidade?

Existe uma falta de planejamento. O Plano Diretor estabelece que a lei de uso e ocupação do solo pode incluir ou excluir áreas do adensamento se ela tiver interesse ambiental, cultural, afetivo e urbano. Então ela estabelece um critério para fazer um planejamento mais refinado, o que não vem sendo feito. E precisa ser contínuo.

O que precisa ser preservado e o que poderia ser mais bem aproveitado na ocupação do solo da cidade?

Você tem vários estacionamentos sem nenhuma construção. Eles são áreas que não cumprem a função social e deveriam ser todos eles construídos, já que estão em áreas bem localizadas. Você pode até, eventualmente, ter estacionamentos no subsolo, o que poderia abrigar até mais carros do que havia antes, com a diferença de que terá um monte de gente morando.

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Em relação à preservação, veja o caso do cinema do Itaú (Espaço Itaú, na Rua Augusta). Estão querendo comprar um “L” ali, que é o lote onde pega os cinemas e uns restaurantes que têm na Rua Antônio Carlos. Ali você poderia fazer o prédio e recuperar toda a área comercial que existe hoje, inclusive o cinema.

Como conciliar a necessidade de mais moradias com a preservação da memória da cidade, como no caso das vilas, algumas já derrubadas?

Precisamos compatibilizar um maior adensamento com a preservação do patrimônio cultural e ambiental. Em relação às vilas, eu sou francamente favorável que sejam preservadas. E não precisa tombar. Ao tombar, é necessário passar pelo Patrimônio, e isso demanda uma série de regras que acabam complicando a vida do morador. Pode-se fazer isso por meio da lei de uso e ocupação do solo, por exemplo.

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Embora prevista no Plano Diretor, a criação das fachadas ativas (pontos comerciais e culturais no térreo, abertos para pedestres) não teve grande adesão dos empreendimentos. Como se explica isso?

Eu acho que existe uma resistência do mercado imobiliário em fazer bons projetos e bons projetos que dialoguem com a cidade. O Plano Diretor criou condições para poder fazer e estimulou que fossem feitos, mas não obrigou, o que talvez tenha sido um erro.

Criou-se uma cultura equivocada de que um prédio que tem comércio se desvaloriza, que talvez tenha um uso incômodo, ou que tenha uma mistura de classes que vai interferir na segurança. Eu não sei exatamente qual é a lógica. Os empreendedores não estão preocupados com a cidade. Eles querem olhar para dentro do prédio deles. Então quando eu digo que tem de obrigar, é que parece que só quando entra na lei e se torna obrigatório é que eles fazem.

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Como o modo de viver na cidade é impactado pela derrocada do comércio de rua no pós-pandemia?

Isso é gravíssimo do ponto de vista de viver na cidade. A pandemia deu um golpe mortal, porque fechou o comércio e muita gente que não fazia comércio eletrônico passou a fazer e se acostumou. Então, a retomada será muito mais difícil, assim como a retomada dos escritórios, com muitos pontos para alugar ou vender. Esses são impactos da pandemia que trazem mudanças que vieram para ficar. E a gente se acostumou.

Essa situação explica em parte a questão da segurança na cidade?

A vida urbana é a rua, o espaço público, o comércio, é o cinema, é o teatro, é a convivência. Quanto mais desertificada a rua, maior o risco de ser assaltado. Uma rua ocupada é o que a Jane Jacobs (ativista política e autora, entre outros, do livro Morte e Vida de Grandes Cidades) chamava de os olhos da cidade.

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Se você vai entrar numa rua comercial, você não tem medo. Agora, se for uma rua que tem muro dos dois lados, que não tem ninguém andando, o risco de uma agressão é muito grande. A cidade está num momento muito difícil, e pode levar a uma decadência da vida urbana. Estamos correndo um sério risco de esvaziar a vida urbana, em comum, e a sociabilidade.

Como a manutenção do home office pode interferir no convívio urbano?

Por mais que seja cômodo para as pessoas, ele faz parte do processo de esvaziamento da cidade. Quando você vai trabalhar, almoça na redondeza, circula pela cidade, faz compra no caminho. No home office, as pessoas ficam na casa delas e não querem sair mais. Compram tudo pela internet, o que gera um monte de embalagens, a quantidade de resíduos sólidos aumenta, tem a falência do comércio de rua. As pessoas ficam dentro de casa.

Outras que podem vão morar na praia, na serra, no interior. Os de renda muito alta vão para fora, e isso também reduz a demanda por comércio, restaurantes, serviços dentro da cidade. E começa a ter um grau de degradação. Tem uma população imensa vivendo aqui, são 22 milhões de habitantes. A população fica sem emprego, sem renda, e a gente tem uma situação de degradação da cidade. E precisa ter uma política de restauração, que passa por habitação, recuperação urbana e por estímulo ao comércio de rua.

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Publicado em VEJA São Paulo de 29 de junho de 2022, edição nº 2795

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