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Bombeiros salvam três vezes mais em acidentes que em incêndios

Na década de 80, 45% das ocorrências atendidas pelos bombeiros eram de combate a chamas. Hoje em dia, os prédios estão mais seguros e a corporação se concentra no trânsito

Por Fábio Soares
18 set 2009, 20h27

Em São Paulo, a associação imediata entre bombeiro e fogo é coisa do passado. Não que esses bravos policiais militares tenham deixado de combater incêndios. Mas o perfil da corporação mudou radicalmente nos últimos anos. Hoje, apenas 8% das ocorrências na capital são de combate a chamas. Em 1981 representavam 45% (veja o quadro). Dois fatores explicam o que aconteceu. Antes de mais nada, as normas de segurança ficaram mais rígidas depois dos trágicos incêndios dos edifícios Andraus, em 1972, e Joelma, em 1974, que mataram, ao todo, 204 pessoas. Nenhum prédio recebe alvará de funcionamento se não conta com equipamentos como extintor, hidrantes e portas corta-fogo, além de brigada de incêndio em número suficiente. Ao mesmo tempo, a frota paulistana de veículos cresceu vertiginosamente. No ano passado, para cada incêndio que tiveram de apagar, os bombeiros foram chamados a atuar em quatro resgates no trânsito, a maioria envolvendo motos. “Os motoqueiros viraram nossos principais clientes”, disse o sargento Jadiel Coutinho, enquanto mostrava os pedidos de socorro originados por quedas de motocicletas que pipocavam no computador do posto da Vila Olímpia, na noite do último dia 3.

Essa mudança fez com que os 2 749 bombeiros revissem seus procedimentos. Boa parte das horas de preparação é empregada no treinamento da retirada cada vez mais rápida de vítimas de dentro das ferragens retorcidas dos automóveis. Desde o início deste ano, o Centro de Instrução do Corpo de Bombeiros, em Franco da Rocha, na Grande São Paulo, recebe três veículos por semana. Cedidos pela Chevrolet e pela Ford em perfeito estado, eles voltam retalhados às sedes das montadoras, no ABC. São carros que haviam sido usados em testes e por isso não podiam ser comercializados. Antes dessa parceria, os bombeiros tinham de ir até as fábricas. “No centro de instrução é possível simular situações mais reais”, diz o capitão Carlos Roberto Rodrigues, responsável pelo curso de salvamento veicular. A carga horária dessa disciplina aumentou. Passou, há dois anos, de doze para vinte horas, distribuídas em cinco lições práticas. Formar profissionais capazes de concluir o resgate em dez minutos, independentemente da gravidade da ocorrência, é a meta de Rodrigues. Primeiro, os formandos têm de correr contra o tempo diante de um ferido no veículo. Depois, a dificuldade vai aumentando (o carro é tombado, capotado e ganha mais acidentados). Em todas as situações, o tempo máximo de dez minutos não pode estourar. O curso é referência nacional. Atrai soldados, sargentos e oficiais de vários outros estados. “Somente em São Paulo existe isso”, afirma o major Reginaldo Leandro da Silva, do Corpo de Bombeiros do Tocantins, que veio conhecer o treinamento no mês passado.

Veja São Paulo acompanhou duas aulas e conferiu a prática nas ruas. Na madrugada do último dia 3, um ônibus e um Fiat Uno bateram na Avenida Corifeu de Azevedo Marques, no Rio Pequeno, por volta da meia-noite. A unidade de resgate 340, do Butantã, chegou em cinco minutos e levou outros catorze para colocar na maca uma vítima que ficara presa no banco do passageiro. Dos 39 170 acidentes com veículos na capital em 2008, em 350 ao menos uma pessoa não conseguiu se desvencilhar das ferragens sem ajuda. Pela gravidade, uma ocorrência desse tipo recebe nível sete, o grau máximo na escala dos acidentes de trânsito.

Só no último ano, 400 000 novos automóveis, motos e caminhões passaram a transitar pelas ruas da cidade. Mas a frota circulante (3,5 milhões de veículos, segundo a CET) tem algumas características que tornam mais difícil o trabalho dos bombeiros. A produção anual de veículos blindados no país subiu 1 699% de 1995 a 2008, segundo a Associação Brasileira de Blindagem. O estado de São Paulo concentra 65% desses carros. Criou-se então o curso de especialização voltado a blindados e caminhões. “Abrir um blindado requer ferramentas mais pesadas, o que exige muita força”, descreve o capitão Rodrigues. “Os cortes no veículo também têm de ser feitos em pontos próprios.” A programação desenvolve, em quarenta horas-aula, habilidades para manusear essas ferramentas nas condições mais adversas. Por vezes, os carros são jogados ladeira abaixo, à noite, com chuva.

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A primeira turma desse curso de especialização passou, literalmente, por uma prova de fogo. No fim da aula vespertina do dia 17 de julho de 2007, chegou a informação de que um avião da TAM atravessara a pista do Aeroporto de Congonhas. O centro de instrução havia acabado de receber ferramentas de uma empresa holandesa usadas para abrir veículos blindados. Vinte bombeiros de sete estados faziam o curso. Rodrigues colocou-os nas viaturas que transportavam os equipamentos e partiu para o local. “Estávamos indo comer pizza depois da aula quando tudo aconteceu”, recorda o capitão Eli José Tavares, atual comandante do 1º Subgrupamento do Corpo de Bombeiros de Jundiaí. “Usamos as ferramentas e pusemos em prática alguns ensinamentos.” O próximo passo para aperfeiçoar as técnicas de salvamento veicular é construir um trecho de rodovia dentro do centro de Franco da Rocha. “Assim, vamos reproduzir acidentes de todos os tipos, de dia e à noite”, diz o major Marco Aurélio Alves Pinto.

Com a entrada em vigor da Lei Seca, em junho do ano passado, a ocorrência de acidentes graves começou a cair. Exceção feita aos que envolvem motos. O número de motociclistas mortos nas ruas da capital cresceu 2,6% no segundo semestre de 2008, de acordo com as estatísticas da CET – doze mortes a mais que as registradas no período anterior. Por dia ocorrem 21 quedas de motociclistas. A multiplicação desses veículos, além, é claro, da imprudência e da irresponsabilidade de grande parte dos motoqueiros, pode explicar o número crescente de acidentes. Nos últimos três anos, a quantidade de motos aumentou 53%. No mesmo período, o número de carros cresceu 15%. Implantar mais oito corredores exclusivos para motos, como o da Avenida Sumaré, é uma saída prometida pela prefeitura. “De nada adianta construir trechos de corredores e depois jogar as motos de novo no meio dos carros”, afirma o engenheiro de transportes Jaime Waisman, professor da USP. “Os resultados são lentos, mas o melhor é educar.”

Se por um lado as motos dão dor de cabeça, por outro representam um meio cada vez mais necessário para que os bombeiros driblem os congestionamentos. Em 2002, a corporação trabalhava com oito motocicletas na capital. Hoje, são 48, em 24 bases. Com esses veículos, os bombeiros conseguem chegar ao local do acidente, em média, quatro minutos e meio depois do chamado pelo telefone 193. É pouco mais da metade do tempo que as unidades de resgate levam: oito minutos. Os pilotos passam quinze dias treinando técnicas de pilotagem defensiva e ofensiva na unidade da Honda em Indaiatuba, no interior do estado. Como quase sempre chegam à frente nas ocorrências, esses bombeiros prestam os primeiros socorros e informam à central se é preciso mandar reforço. Às vezes não há tempo. Que o diga o desembargador Joel Paulo de Souza Geishofer. No dia 10 de março, ele sofreu uma convulsão dentro da sala de julgamentos do Tribunal de Justiça de São Paulo, na Sé, perto do comando central dos Bombeiros. As motos saíram e, em poucos minutos, o sargento Antonio Aparecido Barbosa o atendeu. “Apesar de ter sido bem perto, se tivéssemos de usar o carro perderíamos muito tempo”, conta ele, que tem 41 anos, é pai de família e trabalha no posto da Sé desde 2006. Ter mais de 25 anos, ser casado e com filhos é pré-requisito para a função. “O comando seleciona o pessoal com mais responsabilidade nas costas, menos propenso a se empolgar e sair barbarizando”, explica Barbosa. Geishofer agradece. “Não me lembro do atendimento porque desmaiei e quando acordei estava no hospital, mas todo mundo diz que eles foram ágeis”, conta. “Assim que me recuperar totalmente, vou até os bombeiros cumprimentá-los.”

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O passo a passo do treinamento

Como são os procedimentos para que os quatro integrantes da viatura consigam, em dez minutos, retirar as vítimas de dentro do carro acidentado e encaminhá-las ao hospital mais próximo

1. Chegada ao local: o motorista da viatura tem de estacionar a 10 metros do lugar do acidente, em diagonal, para proteger a área.

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2. Sinalização: a colocação dos cones depende do limite de velocidade na via. Se for de 80 quilômetros por hora, por exemplo, eles terão de ficar a 80 metros do carro do resgate.

3. Isolamento: o motorista da viatura delimita a área de trabalho dos bombeiros com uma fita a uma distância mínima de 10 metros em torno dos acidentados. Se houver vazamento de produto perigoso, a distância aumentará para 30 metros.

4. Vistoria interna: o comandante verifica se há vazamentos, fios energizados, a quantidade e o estado das vítimas dentro do veículo ou sob ele, observa se as portas estão travadas e os vidros, abertos. Depois, põe calços nos pneus e determina o melhor lado para entrar no veículo.

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5. Vistoria externa: é feita a uma distância entre 3,5 e 7 metros dos acidentados. Nessa etapa, o bombeiro abre a lona com ferramentas perto da porta de acesso, procura testemunhas do acidente e vítimas lançadas do veículo ou que tenham saído da área da colisão.

6. Entrada no veículo: se as portas e janelas estiverem travadas, a entrada deverá ser forçada, preferivelmente pelo para-brisa traseiro. Um bombeiro então cobre o ferido e coloca uma máscara de oxigênio nele.

7. Abertura de espaço para retirar a vítima: a regra é tirar as ferragens da vítima, e não o contrário. Dependendo da deformação do veículo, antes de abrir ou retirar as portas é preciso afastar o volante, o painel, as colunas e o teto.

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Ele criou o Manual de Salvamento

De um drama pessoal veio o impulso do capitão Carlos Roberto Rodrigues para se tornar a maior autoridade do país em salvamento de vítimas de acidentes no trânsito. Em 1996, seu irmão caçula, de 18 anos, bateu o carro na Avenida Santa Inês, no Mandaqui. Ele e um amigo ficaram presos às ferragens e morreram. À época com 25 anos, Rodrigues comandava o grupamento do Corpo de Bombeiros da Casa Verde, que cobre a área do desastre. Justamente naquele dia, estava de folga. “O pessoal tinha muita raça, mas precisava melhorar a parte técnica.” Um ano depois da morte do irmão, Rodrigues começou a dar aulas. Autodidata, buscou em livros, na internet e na experiência em eventos internacionais informações para redigir o Manual de Salvamento usado hoje para treinar bombeiros de todo o Brasil. Desde 2004, ele é o responsável pelo Centro de Instrução do Corpo de Bombeiros, em Franco da Rocha.

Sua apostila ensina, na teoria, como deslocar um acidentado preso às ferragens para uma ambulância em até dez minutos. Foi Rodrigues quem intermediou o acordo para levar veículos até o centro de instrução. Criou também o curso de especialização em blindados e caminhões. Nas aulas, ele divide as turmas em equipes de quatro integrantes, número ideal de bombeiros por viatura em ocorrências importantes. Cada um tem sua função. Entre brincadeiras e broncas, corrige as ações. “Não se sintam mal, mas está horrível”, disse Rodrigues, após a tentativa atrapalhada de um dos quartetos em sua primeira aula prática, no dia 19 de março. O suor nos rostos retrata a tensão dos bombeiros após cada exercício. “Eles sabem fazer tudo, mas, quando pego a prancheta e ligo o cronômetro, vem a adrenalina”, afirma. “Esse é o objetivo, recriar a tensão que eles encontrarão nas ruas.”

As tragédias que motivaram as novas leis

Depois dos incêndios nos edifícios Andraus (à esq.), em 1972, e Joelma, em 1974, com um total de 204 mortes, a legislação tornou obrigatórios equipamentos de prevenção e brigadistas em todos os prédios paulistanos

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