Uma reflexão sobre Regina Duarte em “Raimunda, Raimunda”
Canso de ver artistas no palco tão entusiasmados quanto estariam na fila do banco. Entram em cena como se precisassem quitar uma conta e voltar correndo para casa. Bem, talvez muitos deles passem por uma situação assim e não estejam satisfeitos com o trabalho, mas aquele sujeito que pagou caro pelo ingresso percebe na hora […]
Canso de ver artistas no palco tão entusiasmados quanto estariam na fila do banco. Entram em cena como se precisassem quitar uma conta e voltar correndo para casa. Bem, talvez muitos deles passem por uma situação assim e não estejam satisfeitos com o trabalho, mas aquele sujeito que pagou caro pelo ingresso percebe na hora e nada tem a ver com a infelicidade alheia. É justamente oposta a sensação transmitida por Regina Duarte ao protagonizar a comédia “Raimunda, Raimunda” no Teatro Raul Cortez. A atriz mais popular do Brasil, nosso Roberto Carlos das novelas, surge radiante, feliz ao lado do jovem elenco e disposta a trocar energia. Tanto que aos poucos o espectador abandona o desapontamento com a equivocada montagem e esquece o conjunto a que está assistindo. Concentra a atenção total na entusiasmada estrela, que, afinal de contas, o fez sair de casa.
Bem, eu não gostei de quase nada na montagem dirigida pela própria Regina, embora tenha me incomodado muito pouco de estar naquela plateia. Ator de mal com o mundo ou com a arrogância estampada na testa complica muito mais a vida. Entendo parte dos motivos que a levaram a criar o espetáculo. Em nome de seus 50 anos de carreira, ela seguiu a própria intuição e fez o que bem entendeu. Garante que tentou muito, mas não encontrou encenador algum cujas ideias fossem semelhantes às delas e tocou ficha sozinha. Na verdade, evitou que metessem o dedo no seu riscado. Só que Regina, apesar da incontestável trajetória, não é uma diretora, ainda mais de teatro, linguagem para qual se dedicou de forma bissexta. Ela pagou o preço pelo seu sonho. Montou “Raimunda, Raimunda” e não escapou do peso da inexperiência. As soluções são simplistas e esteticamente feias, como projeções e narrações. Mas, principalmente, a encenadora não encontrou uma costura mais clara entre as duas histórias apresentadas e também preferiu não fazer uma separação explícita delas.
A comédia envolve os textos “Ramanda e Rudá” e “Raimunda Pinto”, ambos do autor piauiense Francisco Pereira da Silva (1918-1985). No primeiro, uma mulher nascida Raimunda e rebatizada de Ramanda no Festival de Woodstock enfrenta um futuro devastado. O planeta está acabado, a água secou e as pessoas só respiram com bombas de oxigênio. Sua única companhia é a de um hermafrodita, o Rudá (papel de Saulo Segreto), com quem mantém um clima de romance não consumado. Em meio a esse recado ecológico, o texto parece mais surreal que de fato um alerta. O público assiste a tudo com um misto de estranheza e espanto e, quando a história se encerra, ao som de Elis Regina com “Aos Nossos Filhos”, fica a pergunta. E agora? O que vem por aí?
Eis que começa uma nova peça, completamente independente e num tom cômico acelerado e muito mais absurdo. Trata-se de um épico sertanejo sobre a cearense Raimunda Pinto, da adolescência até a maturidade. Renegada por ter lábio leporino, a menina pobre abandona a terra natal rumo ao Rio de Janeiro. Na então Capital Federal, ela deseja se tornar enfermeira e, assim, corrigir a má formação congênita com uma operação gratuita. Pelo seu caminho, passam uma trupe circense, o presidente Getúlio Vargas (interpretado por Henrique Pinho) e por aí vai… Diplomada e devidamente operada, Raimunda é descoberta por um estilista (papel de Rodrigo Candelot) e vira modelo de passarela. Logo, a personagem conhece um milionário e outro e mais outro, transferindo-se para São Paulo, mais tarde para Washington e sonhando com a felicidade no Japão. Está confuso, leitor? Bem, é isso…
Penso que Regina ficou fascinada como leitora pelo texto de Francisco Pereira da Silva e esqueceu o quanto seria complicado levá-lo ao palco. O primeiro apresenta um tema atual e relevante, claro. Todo mundo teme acabar sem água na torneira, para dizer o mínimo. Já o segundo começa como uma história de obstinação. Aquela garota capaz de tudo para livrar-se do incômodo defeito no lábio até provoca o espectador. Mas chega uma hora em que ela perde completamente a coerência e transforma-se quase em uma prostituta.
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Ver Regina Duarte em sucessivas cenas que dispensam o realismo por completo é inusitado. Tal qual Luz del Fuego, ela enrola-se em uma cobra. Em outro momento é a top dos eventos de moda rebolando como Gisele Bündchen. Na fase ensandecida da agora anti-heroína, simula cheirar cocaína e encher a lata de uísques. E ali está Regina Duarte, a namoradinha do Brasil, que já foi Malu Mulher, Viúva Porcina e Rainha da Sucata. Mais que tudo isso está uma atriz feliz, com um sorriso de menina estampado no rosto maduro, brincando em cena e louca para divertir o público. Mais uma vez, Regina tenta hipnotizar seu interlocutor. Comigo não deu resultado, mas confesso que respeitei sua coragem em dar a cara para bater. Quem sabe com você seja diferente.