Monge Satyanatha reflete sobre as páginas em branco da vida
"Tem de ser escrito a cada dia, com criatividade, com amorosidade, pela melhor versão de mim, a mais experiente, aquela que existe apenas no agora"
Eu não sei. É essencial não saber.
Ou então o caminho se torna pesado, as costas doem, o corpo arqueja. Porque somos humanos. Carregamos em nós demasiados fardos, memórias, achismos e certezas. Arrastamos opiniões dos outros, convicções enrijecidas, moral inquestionável e tradição. Levamos aquilo que não é nosso e que nos dá cansaço. Só a abertura ao novo descobre o mundo, como uma folha de papel em branco.
Um dia, um monge se encontrou com um homem que sabia muito, que lera muitos livros, um erudito. Mas era um homem inquieto. Desesperado por não haver, ainda, encontrado a chave que buscava, uma linha almejada que ligaria tudo o que sabia e traria paz. Ele andara até o monastério em busca da epifania, da resposta — mas tinha pouca esperança de encontrar. Era um sobrevivente de muitas, inúmeras frustrações.
O monge ofereceu silêncio e chá. Cordialmente, pôs a mesa. Colocou as xícaras com o cuidado de quem sabe que tudo é importante. E, finalmente, começou a servir o chá.
— Está bem, obrigado — disse o erudito. O chá ocupava quase toda a xícara. — Está bem, já chega, mestre, obrigado! — exclamou, quando a xícara estava quase transbordando. E o chá continuou a sair do bule, na xícara já cheia. A água quente se espalhava, escorrendo pela mesa, caindo no homem e quase o queimando. Aos gritos, ele fez o monge parar.
Os dois se sentaram. O coração do homem batia acelerado e assustado. O monge encontrava-se sentado à sua frente sem expressão. A xícara do homem estava repleta; a do monge permanecia vazia. Trêmulo, o erudito perguntou:
— Mestre, por que o senhor fez isso?
O monge respondeu sem se alterar, com um ligeiro sorriso — Xícara cheia, nada mais se pode acrescentar. O homem não entendeu, naquele momento. Nem poderia. Só anos depois, maduro, entenderia. Sua cabeça repleta de fatos, e entulhada de ideias, era como aquela xícara. Nada caberia nela.
Disse Aristóteles: “Amado é Platão, mas ainda mais amada é a verdade”, recusando-se a apenas repetir o que seu mestre havia ensinado. A verdade é simples; o mundo muda rápido e ela pode se apresentar de uma maneira diferente.
Tento ser como uma folha em branco sobre a mesa de uma biblioteca. Isso não é um convite à ignorância, os livros estão lá e me ajudam muito. Mas o papel tem de ser escrito a cada dia, com criatividade, com amorosidade, pela melhor versão de mim, a mais experiente, aquela que existe apenas no agora.
Eu não sei muita coisa, e portanto me testo sempre que posso. Sou capaz de fazer o bem? Sou capaz de amar, muito e amplamente? Estou onde deveria estar? Vivo o que deveria viver? Sou quem quero ser, ou sou aquele que um dia lá atrás eu achava que queria ser? O não saber é ativo: ele é o ato de não deixar que pensamentos entulhem os cantos, que dogmas permaneçam estagnados, que ideias mofem.
O papel em branco é a mais linda invenção do mundo. Sobre ele foram escritas as obras de Shakespeare, os sonetos de Camões, a Teoria da Relatividade, de Einstein, e desenhados os rabiscos de gênios e artistas. Ele é indispensável. E se você o encontrar em si, através da sincera busca por sua verdade, sentirá um enorme alívio, e poderá escrever a sua vida, para que ela seja o que você quiser.
Satyanatha, mais conhecido como Sat, trocou a engenharia da computação e a consultoria estratégica pela dedicação por sete anos à meditação no monastério indiano de Kauai. É criador do aplicativo Vivo Meditação. Seu Instagram é @satyanatha.
Publicado em VEJA SÃO PAULO de 09 de outubro de 2019, edição nº 2655.
+ PODCAST Jornada da Calma, com o monge Satyanatha e Helena Galante