Gênio da cozinha francesa, Paul Bocuse morre aos 91 anos
Além de trechos da carreira do chef, conto como foi minha visita a seu estrelado restaurante em Collonges-au-Mont-d’Or, no interior da França
Clássica ou moderna, não existe mais do que uma só cozinha… a boa.
Essa é uma das ótimas tiradas de Paul Bocuse, morto hoje aos 91 anos, em Collonges-au-Mont-d’Or, cidadela colada a Lyon, a segunda maior metrópole da França. Bocuse não era apenas uma estrela da cozinha, mas uma lenda viva.
Antes, um pouco de história, meu caro leitor, nos ajuda a entender a relevância de Bocuse, cozinheiro que ajudou a transformar a gastronomia do século XX. Desde o advento do restaurante moderno na França ao final do século XVIII, uma nova e fulgurante carreira surgiu no país-símbolo da alta gastronomia: a de chef de cozinha.
Pouco antes da Revolução Francesa, os medalhões deixaram de trabalhar apenas para a realeza, a nobreza e os novos ricos para se tornar donos do próprio negócio, em um tipo de estabelecimento único, que permitia a cada cliente escolher os pratos anotados no menu com preços que comporiam a refeição e saber a conta – sim, comer fora, já podia sair muito caro.
O chef, ou seja, o profissional que comandava a equipe forno e fogão, sempre rendia assunto e notícias. Basta consultar em jornais e revista do passado textos como as críticas de restaurante do pioneiro Grimod de la Reynière a partir de 1803, para saber que na França não faltam nomes para ilustrar a saga desses empreendedores da cozinha.
Para não tornar essa lista longa e enfadonha, cito apenas três expoentes de uma constelação quase sem fim: o chef-empresário Antoine Beauvilliers, registrado por Brillat-Savarin como o pioneiro da fama na Paris do fim do século XVIII, o mestre das técnicas que usamos até hoje Auguste Escoffier e o festejado pai da cozinha francesa moderna Fernand Point. Como se nota, tratar personagens de forno e fogão como celebridades é assunto antigo. Para não ficar no túnel do tempo, incluo um quarto nome, o mais cintilante entre os empresários-cozinheiros da atualidade: Alain Ducasse.
Toda essa introdução é para dizer que o homem mais importante da culinária francesa no século XX partiu nesta manhã em consequência de problemas causados pelo mal de Parkinson. Bocuse, um sujeito grandalhão de sorriso afável e, dizem, duríssimo na cozinha, era o mais reconhecido artífice da nouvelle cuisine, que teve nomes como Jean e Pierre Troisgros (este último pai Claude e avô de Thomas Troisgros), Roger Vergé, Alain Chapel e Michel Guérard. Nenhum deles foi tão longe quanto Bocuse em sua cruzada pela divulgação da gastronomia francesa mundo afora e também no apetite para negócios.
Bocuse tornou-se a imagem mais marcante da explosão renovatória da cozinha francesa a partir do fim dos anos 1960 que propunha pratos em porções menores, assim como uma redução de excessos como creme de leite e outros itens que pesavam no estômago, sem alterar radicalmente receitas tradicionais. Era uma revisão geral essa tal nouvelle cuisine. E que revisão!
A leveza culinária estava diretamente associada à qualidade dos produtos utilizados. Bocuse valorizava os ingredientes da temporada, que inclusive rendeu um dos muitos livros de receitas que escreveu, La Cuisine du Marché, lançado em 1976 (no Brasil, ganhou a tradução tardia em 2003 pela Record com o título A Cozinha de Paul Bocuse). Como as matérias-primas das estações do ano deveriam definir o menu, a partir daquele momento o frescor tornou-se ainda mais essencial.
O movimento traçado por Bocuse e seus contemporâneos também propôs uma reorganização do serviço. Pratos, que agora vinham montados da cozinha, pareciam obras de arte, com desenhos sedutores ao olhar. O insight para essa mudança deve ter vindo depois de uma viagem de Bocuse ao Japão.
Ao receber, em 1975, a honraria máxima da França, o título de cavaleiro da Légion d’honneur, pelo presidente Valéry Giscard d’Estaing no Palácio l’Elysée, sua imagem correu ainda mais fortemente o mundo. Estava construído o mito, que aproveitou a ocasião para criar um prato ícone: a sopa VGE, com as iniciais do mandatário francês. Os merecidos prêmios para Bocuse se sucederiam aos borbotões, inclusive fora da França. Nos Estados Unidos, por exemplo, recebeu em 2011 o título de chef do século do Culinary Institute of America.
Paralelamente, Bocuse erguia um império gastronômico avaliado, hoje, em 50 milhões de euros por especialistas, e espalhou sua assinatura culinária em lugares tão diferentes como o Brasil e o Japão. Atualmente, seus negócios na França estão concentrados em Lyon. Além do principal restaurante, o Paul Bocuse, em Collonges-au-Mont-d’Or, há quatro bistrôs intitulados Brasserie Le Nord, L’Est, L’Ouest e Le Sud. Também inclui o Comptoir de l’Est e o Marguerite mais uma casa de comida rápida, o Ouest Express, inaugurado em 2016.
Fora do país natal, o grupo PB tem ainda o Chefs de France, este no interior do pavilhão do Epcot Center, parque de diversões da Disney, em Orlando, e uma rede de oito bistrôs no Japão em parceria com o grupo Hiramatsu.
Outro passo fundamental do chef para difusão mundial da gastronomia de seu país foi a criação em 1987 do Bocuse d’Or, a mais renomada competição internacional de gastronomia da França, que reúne jovens cozinheiros de todo o mundo. Três anos depois, surgia o Institut Paul Bocuse, centro excelência na aprendizagem profissional.
De forma peculiar, Bocuse chegou ao cinema. A vida do chef, que estreou profissionalmente aos 16 anos como ajudante de cozinha, inspirou a animação Ratatouille, de 2007.
Este jornalista teve a oportunidade de encontrar monsieur Bocuse três vezes. A primeira delas no início dos anos 2000 quando ele esteve no Rio de Janeiro para um festival no extinto Le Saint Honoré, que funcionou na cobertura Le Méridien entre 1979 e 2007, hoje transformado em um hotel da bandeira Windsor. A última delas foi em 2009, na visita que fiz no restaurante com seu nome em Collonges-au-Mont-d’Or.
Terminada a refeição e com a conta paga, tive a oportunidade de conversar com próprio Bocuse na ocasião. Entusiasmado com a presença do jornalista brasileiro, me convidou para conhecer a equipe de cozinha, na época liderada pelo chef-executivo Christian Bouvarel, que se aposentou em setembro de 2011 depois de 42 anos trabalhando ao lado do gênio da cozinha.
O ponto alto da refeição foi justamente a sopa VGE, coberta por uma massa folhada. Rompida a casca dourada, encontrava-se nadando no caldo fumegante e límpido, cubinhos de hortaliça, foie gras e, perfumando tudo, lâminas de trufas negras. Uma criação magnífica que entrou para a história da gastronomia.
Também era possível perceber que o restaurante continuava admirável, mas envelhecido na proposta – justamente o bastião da vanguarda não se renovou. Talvez mantivesse as três estrelas máximas do Guia Michelin, conquistada em 1965 e mantidas nos últimos 52 anos, mais pelos notáveis serviços prestados por Bocuse do que pela culinária que vinha repetindo.
Com sua capacidade de revelar talentos, espalhou discípulos mundo afora. Conversei com o chef Laurent Suaudeau, que veio para o Brasil pelas mãos do mitológico cozinheiro para trabalhar no Rio, onde chegou em 1980 comandar o Le Saint Honoré. Para afilhado Laurent, o antigo mentor era “Um homem a quem devo muito e jamais serei capaz de agradecer o suficiente. O homem que confiou a missão a um jovenzinho de 23 anos de o representar no Brasil. Penso sinceramente que desde a presença de Bocuse no país, se abriu o caminho para a cozinha contemporânea por aqui. Todos os cozinheiros do Brasil e do mundo deveriam respeitá-lo e agradecê-lo”.
Monumental, Bocuse já era imortal muito antes de sua morte. E assim seguirá como uma lenda, em especial para os amantes da boa mesa.
Obrigado pela visita. Aproveite para deixar seu comentário, sempre bem-vindo, e curtir a minha página no Facebook. Também é possível receber as novidades pelo Twitter e seguir minhas postagens no Instagram.