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Por Arnaldo Lorençato
O editor-executivo Arnaldo Lorençato é crítico de restaurantes há mais de 30 anos. De 1992 para cá, fez mais de 16 000 avaliações. Também é autor do Cozinha do Lorençato, um podcast de gastronomia, e do Lorençato em Casa, programa de receitas em vídeo. O jornalista é professor-doutor e leciona na Universidade Presbiteriana Mackenzie
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A triste morte do Capuano, o restaurante mais antigo de São Paulo

Inaugurada em 1907 como uma loja de vinhos, a casa que estreou o conceito de cantina italiana na capital fechou definitivamente

Por Arnaldo Lorençato Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 20 jan 2022, 14h27 - Publicado em 30 abr 2018, 07h06

Ainda que não tenha restado um único documento com a data precisa da inauguração, o ano de 1907 foi o adotado como da abertura oficial do Capuano. Numa conta fácil de fazer, basta uma simples subtração para se saber que o lugar completaria 111 anos em 2018. Não deu tempo.

O estabelecimento aberto por Francesco Capuano, no Bixiga, e vendido a Angelo Mariano Luisi, em 1961, fechou as portas no domingo, 15 de abril. Encerrava-se o ciclo de vida do mais antigo restaurante paulistano em atividade contínua. Mais velho que o Capuano só o Carlino, surgido em 1881, mas que teve sua trajetória interrompida por um hiato de três, entre 2002 e 2005, período em que permaneceu fechado. Ainda hoje, o Carlino não funciona diariamente, só algumas vezes por semana.

Luisi: com vigor aos 91 anos para noites de bandolim e clarinete (Mario Rodrigues/Veja SP)

Com a morte do Capuano, motivada pela venda do imóvel onde ficava o restaurante pelas herdeiras de Luisi, encerra-se um importante capítulo da história da gastronomia ítalo-paulistana. Raros endereços da cidade têm esse singular valor histórico. Seria o fundador Francesco Capuano o primeiro a adotar a palavra cantina para batizar um restaurante italiano barato – uma vez que na Itália esse tipo de estabelecimento familiar é conhecido por trattoria ou osteria; por lá, cantina é o local de produção e de venda de vinho. Cantina ainda designa qualquer restaurante barato em muitos países do Ocidente, como também designa inclusive lanchonetes escolares.

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As cantinas, em sua singularidade, foram responsáveis por moldar um paladar muito particular com a difusão de massas inundadas de molho e de cozimento acima do ponto. Também geraram receitas que só existem aqui, caso do capelete à romanesca, surgido nos salões do Gigetto, quando ainda ficava num belo casarão da Rua Nestor Pestana. Assim como a Capuano, o Gigetto também desapareceu. Seu último e quarto endereço foi na Rua 13 de Maio, também no Bixiga. Aberto em 1938 em uma travessa da então elegante Avenida Rio Branco, encerrou sua história de mais de 77 anos em 1º de janeiro de 2016.

Baú de memória do proprietário falecido no ano passado: uma parte da história da cozinha ítalo-paulistana (Mario Rodrigues/Veja SP)

O fim emblemático do Capuano, a mãe de todas as cantinas da capital paulista e do Brasil, traz uma revelação: esse tipo de negócio familiar vem diminuindo significativamente tanto em número de endereços quanto em público nas duas últimas décadas. Não é uma constatação feliz, uma vez que na cantina forjou-se um tipo de culinária que posteriormente se tornou um dos símbolos da culinária italiana na cidade. Mas as cantinas tendem a desaparecer e desaparecem com elas parte das memórias culinárias da capital. É urgente que se registrem essas histórias. Como não se renovaram, paulatinamente vêm sendo substituídas por modernas trattorias como o Moma – Modern Mamma Osteria, premiada como a melhor da categoria na mais recente edição de VEJA SÃO PAULO COMER & BEBER.

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No caso da Capuano, a história não teria como ser mais apetitosa. Francesco Capuano começou não como um restaurante, mas como um armazém de secos & molhados. Era derivação de outro negócio ao qual se dedicava: a importação de vinhos Cirò, de sua Calábria natal, assim como de outros produtos como a sardela. Na própria loja instalada no porão da casa onde morava, o homenzarrão de quase dois metros resolveu servir queijos e alguns petiscos para os tomadores de vinho que apareciam em sua loja. Demorou mais de uma década para a cantina virar restaurante.

O fundador Capuano: instituição de um único menu e serviço só de jantar (Acervo pessoal/Veja SP)

Desde o início, os pratos eram oferecidos da maneira que Capuano determinava. Era ele quem decidia o que cliente iria comer a partir de um cardápio completo e obrigatório, que hoje talvez fosse chamado de menu fixo. Iam à mesa uma sequência composta de fusilli, camarão ensopado, cabrito à caçadora e salada de alface. De sobremesa, pera ou maçã seguida de café passado no coador. Da lista de pratos, vá lá, ele permitia uma única alteração. Era possível escolher entre cabrito ou frango à caçadora.

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Por sugestão da esposa, Concetta Scuotto, Capuano voltou à Itália no início dos anos 1960 e passou o negócio ao conterrâneo Angelo Luisi, que desembarcou em São Paulo em 1949, para escapar de uma Itália devastada pela Segunda Guerra. Como bem anotou a repórter Sophia Braun em um belo perfil de Luisi publicado em por Veja São Paulo em outubro de 2011, ele teria uma visão particular do antigo proprietário.

“Comprei do Francisco Capuano, o fundador, que como todo calabrês era um sujeito cabeça-dura”, disse à época o restaurateur nascido em 29 de fevereiro de 1920 em Casalbuono, cidade da província de Salerno, no sul da Itália. A crítica era uma referência ao fato de Capuano só servir jantar e manter um único cardápio fechado, deixando os clientes sem opção. Em seguida à compra, o novo dono tratou de esticar o horário para o almoço. E ampliou as sugestões de massa, que atingiram um total de quinze variedades com onze tipos de molho na época do fechamento da cantina. Colocou ainda pedidas como polpettas e braciolas. Luisi só não encostava no fogão como seu antecessor. Cabia a sua mulher, Angela, que insistiu para que ele adquirisse o restaurante, cuidar da comida. Por isso, na cozinha só trabalhavam mulheres, tradição que se manteve mesmo depois da morte dela, em 2005.

Cantina Capuano dia de seu fechamento definitivo: fachada desgastada e fotos de Luisi (de bigode) ainda nas paredes (Ana Leão/Veja SP)

Antes de conseguir juntar dinheiro para dar entrada na Capuano, Luisi foi projecionista no extinto Cine Opera, na Rua Dom José de Barros, no centro, e vendedor ambulante. O restante do pagamento foi parcelado. Cheio de energia e talento musical, Luisi tocava clarinete e bandolim. Era comum vê-lo no salão já com mais de 90 anos alegrando a clientela com seu som. O repertório incluía canções conhecidas como Nel Blu Dipinto di Blu, popularmente conhecido como Volare.

Luisi faleceu em 9 de julho do ano passado. “A cantina funcionou enquanto seu corpo era velado no andar de cima, onde ele morava. Coisa de cinema, como boa parte da vida de Angelo”, conta o representante da Accademia Italiana della Cucina Gerardo Landulfo. Há alguns anos, a cantina tocada por suas filhas Elisabetta e Teresa já não tinha o mesmo viço. Entrou numa espiral de declínio até fechar as portas neste mês, ao ser vendida.

“Estamos desocupando o imóvel. O comprador quer o salão limpo em dois meses. Embora tenhamos encerrado na Conselheiro Carrão, estudamos a possibilidade de abrir em outro lugar. Mas não há nada definido. Por enquanto, são só projetos”, conta Elisabetta, uma das duas filhas de Luisi – a outra chama-se Teresa. Com a ajuda dos maridos, eram elas que tocavam a Capuano e venderam o imóvel legado pelo pai ao português Agostinho Gomes dos Santos sócio da Panificadora Camões (Rua 13 de Maio, 518) que possivelmente abrirá uma pizzaria no local. Fica para elas a herança de um baú com o acervo pai, onde se encontram entre outros objetos fotos que contam inclusive a participação de Luisi na Segunda Guerra, lutando na Líbia.

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Seja com Capuano, seja com Luisi e suas descendentes, uma coisa nunca mudou na cantina mãe de todas as cantinas. O fusilli, enrolado manualmente um a um em longas varetas, continuava a massa obrigatória por lá.

A última refeição

A mineiro-carioca Ana Leão estava no último serviço da Capuano com o marido, Augusto, e enviou o comovente relato do encerramento da cantina:

Domingo chuvoso, primeiro friozinho pós-verão. Em busca dos restaurantes mais tradicionais do Bixiga, encontramos no site da Vejinha a Capuano. Chegamos lá. A portinha estreita e fachada meio caída contrastava com a ostentosa placa “a cantina mais antiga em funcionamento ininterrupto de São Paulo”. Sentamos na mesa número 1, após passarmos por duas mesas com fusillis fumegantes, porpetas e sardela. O garçom entrega o cardápio e pedimos a carta de vinho. Ele responde: ‘olha, só temos aqueles ali. E aponta a prateleira vazia: Miolo meia garrafa e Almadén. É que hoje é o último dia da casa.’ Como assim? Sim, último dia de funcionamento. Silêncio. Ele sai. Beicinho tremeu. Não tenho coragem de agradecer e ir para embora. Estamos no último dia da cantina mais antiga em funcionamento ininterrupto de São Paulo. Tipo: dia do fim do mundo. Pedimos meia garrafa de Miolo. E o couvert. Pão italiano, azeitona, sardela e linguiça. Tudo bom. Uma moça chega no meio do salão e pede a atenção de todos. As mesas estão todas ocupadas. Ela começa um discurso emocionado e fofo contando que, após a morte recente do bisavó, a família vai encerrar a operação. Agradece a frequência dos amigos. Os clientes de uma mesa aplaudem. A família ao fundo chora. Aplaudimos todos eles e as senhoras da cozinha, que vem pra o salão. Todos os amigos choram. Depois de pedirmos fusilli e braciola, recebemos a cantora e um violonista com uma camiseta do Super Homem. Perguntam o que queremos ouvir. Respondo que não sei. ‘É italiana?’ Não, portuguesa. A cantora vai buscar a letra de uma canção. Oro: fado não. Sim. Canta um fado de cortar o coração [Foi Deus, de Alberto Janes]. Chega o fusilli num molho ralo. Cadê a braciola. Chegou atrasada, porém, em tempo de salvar o molho mais triste que o fado. Comemos o último fusilli da mais antiga em funcionamento de São Paulo. E lembramos do Lorençato que, com certeza, faria deste um momento mais solene.

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