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Nós na Oban

Por Ivan Angelo
Atualizado em 5 dez 2016, 16h55 - Publicado em 1 set 2012, 00h31

Fernando Sabino disse uma vez que fez muitos cursos, mas ganhava a vida com o curso de datilografia. Posso dizer que ganhei a vida com o curso de datilografia do meu amigo Geraldo Mayrink. Conto.

Primeiro, lembro a todos: naquele tempo, era perigoso ter amigos. Certos amigos. Você podia ser preso por conhecer pessoas, por permitir que um camarada da vida inteira passasse uma noite na sua casa apenas para descansar. Nem era preciso que ele fosse de um sindicato, militante estudantil, da esquerda, da luta armada; bastava ser suspeito. Na portaria dos prédios, qualquer visitante tinha de preencher uma ficha que ia para o Dops.

Em setembro de 1969 ocorreu o sequestro no Rio do embaixador dos Estados Unidos, Charles Elbrick. Um amigo nosso, dos tempos peraltas de Belo Horizonte, participou da ação e começou a ser caçado lá no Rio. Foi transferido para São Paulo e passou a militar numa célula operária. Um dia procurou um amigo, só queria dormir uma noite. O rapaz disse que não dava, e ele compreendeu. Tinha se tornado um doente contagioso. Me ligou uma noite. Afetivo, queria só dar uma volta de carro conosco, eu e minha mulher de então, conversar, matar a saudade. Apesar do risco, rodamos por mais de uma hora pela cidade, ele nas sombras do banco de trás, estranho bigodão, mesma risada, e o deixamos em algum ponto para lá do Borba Gato. Ufa!

Numa noite, creio que no começo de janeiro, homens da Operação Bandeirantes apanharam a mim e ao Geraldo, ele no seu trabalho na Editora Abril, eu na redação do “Jornal da Tarde”, e nos levaram para “prestar alguns esclarecimentos”. Enquanto eu descia de elevador com os homens, não sabia que o Geraldo já estava no carro. Quando o vi, compreendi que se tratava de algo relacionado com Fernando Gabeira e me preparei; e creio que ele também. Fomos levados num daqueles carros que se tornaram sinistros na época, as potentes Veraneios, espremidos entre dois agentes, com metralhadoras na mão e pistolas na cintura. Proibidos de falar um com o outro ou com eles.

Lá, ameaçaram: se nossas histórias não batessem uma com a outra e com as coisas que eles sabiam, nós estaríamos encrencados. Qualquer detalhe suspeito seria motivo para sermos levados “lá para baixo”. Depois de interrogados longamente, separadamente, alternadamente, como nossas histórias se casaram — sim, o conhecíamos, sim, éramos amigos, sim, participávamos de festas e pileques no passado, não, desconhecíamos as atividades políticas dele, era um gozador, jornalista intelectual, foi um espanto quando soubemos da participação dele no sequestro, não, depois que sumiu do “Jornal do Brasil” nunca mais o vimos; sim, sabíamos que ele estava sendo procurado em São Paulo porque éramos jornalistas etc. etc. —, eles disseram que até poderíamos ser dispensados, mas teríamos de ficar até de manhã, esperando a turma que renderia a deles, para datilografar as informações dos nossos depoimentos. Nenhum deles sabia escrever a máquina, como se dizia.

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Aí veio a presença de espírito do Geraldo. Ele se propôs, se não se importassem, a datilografar o que havíamos contado. Para surpresa nossa, aceitaram. Geraldo escreveu com aquela rapidez dos bons datilógrafos de dez dedos e dos jornalistas seguros, trocou pormenores com eles, finalizou, eles leram, passando o papel de uns para os outros, acharam que estava o.k., nos libertaram, atravessamos o pátio a pé, passamos pelo portão, devagar, pegamos um táxi na Rua Tutoia e fomos embora. Salvos.

No táxi, estávamos com a boca seca e a garganta meio travada. Ele revelou que só se ofereceu porque estava morrendo de medo de irmos “lá para baixo”, onde a coisa, como se sabia, era cruel.

Fernando foi preso no dia 31 de janeiro, no bairro de Santo Amaro, quando, em fuga, levou um tiro pelas costas. Na segunda passada (27), fez três anos que o Geraldo morreu, e me lembrei dele, e de tudo isto. O bate-pronto dele e seu curso de datilografia nos salvaram do pior naquela noite.

E-mail: ivan@abril.com.br

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