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Hospital da Polícia Militar: Quando os soldados tombam

Conheça o Hospital da Polícia Militar, no Tremembé, que só no ano passado atendeu 363 praças e oficiais paulistas feridos em serviço, fez 1 600 cirurgias e realizou 62 000 consultas

Por Filipe Vilicic
Atualizado em 5 dez 2016, 10h20 - Publicado em 25 set 2009, 20h13

Todos os sábados à noite, o sargento da PM Adauto Anselmo costumava buscar sua mulher, Cristina Bortalace, também policial militar, em um centro espírita em Carapicuíba, cidade da região metropolitana de São Paulo. Assim fez, pela última vez, em 4 de julho deste ano. De moto, os dois pararam em um bar para cumprimentar um amigo. Lá, por volta das 10 da noite, dois homens armados com revólveres calibre 38 abordaram o casal. Eles dispararam contra o sargento, que respondeu aos tiros. Alvejado três vezes (duas balas na testa e uma no braço esquerdo), Anselmo tombou. Os bandidos também foram atingidos e um terceiro criminoso, que se escondia em um carro, entrou em cena para auxiliar os comparsas, levando-os para o automóvel. “Na hora não doeu, porque só pensava em revidar e me proteger”, recorda Anselmo. “De repente me senti fraco, caí e a última cena de que me lembro é Cristina correndo em minha direção.” Ela saiu em socorro do marido quando um dos delinquentes voltou, deu três disparos nas costas dela, roubou a arma do PM e escapou com os colegas. Cristina morreu no local. Um dos bandidos baleados morreu pouco depois, outro está preso e o terceiro fugiu. “Foi vingança”, afirma o sargento, desolado. “Os três eram irmãos de um traficante que eu havia mandado para a cadeia um mês antes do tiroteio.” Dezoito dias após a tragédia, ele e sua mulher completariam vinte anos de casados.

Levado para um pronto-socorro de Osasco, Anselmo passou por duas cirurgias na cabeça antes de ser encaminhado ao Hospital da Polícia Militar (HPM), na Avenida Nova Cantareira, no bairro do Tremembé, na Zona Norte. Lá, os médicos fizeram uma terceira operação e colocaram uma placa de metal em seu braço esquerdo. Ele ainda permaneceu duas semanas internado, até o último dia 1º, quando recebeu alta. Retornou dez dias depois, por estar com fortes dores no membro ferido. Para recuperar os movimentos do braço, fará sessões de fisioterapia no Centro de Reabilitação da Polícia Militar, vizinho ao hospital. Por enquanto, é claro, está afastado do serviço. “O que mais desejo é voltar a trabalhar na rua”, diz. “Apesar do risco e de ter perdido minha mulher, por ela ser policial, gosto de ajudar a sociedade com o que faço.” Não é a primeira prova de coragem do sargento. Em seus dezoito anos de carreira, ele se envolveu em 23 tiroteios e já havia sido alvejado em 2001 – o disparo de um ladrão atingiu seu colete à prova de balas.

Histórias como a de Anselmo são comuns nos corredores do hospital, que se destina a atender os 90 000 PMs do estado na ativa e os 46 000 aposentados. Em 2008, passaram por lá 363 policiais feridos em serviço. “Aparece, no mínimo, um novo baleado por semana em minha sala”, conta o tenente e ortopedista Rafael Riscali Moraes, que trabalha há três anos no HPM e faz cirurgias em hospitais particulares, como o Sírio-Libanês e o Oswaldo Cruz. “Fora daqui, é raríssimo eu cuidar de um paciente assim.” O soldado Ronaldo Dias é um dos pacientes do tenente Moraes. No dia 12 de julho, em Várzea Paulista, no interior do estado, ele foi alvejado cinco vezes nas pernas por um homem armado que tentava estuprar duas mulheres em uma construção. “Ao menos consegui evitar o crime e meus colegas pegaram o bandido”, diz Dias, que passou por uma cirurgia no HPM e fará fisioterapia para voltar a andar.

O hospital da PM foi fundado em 21 de setembro de 1892 pelo então presidente do estado de São Paulo, Bernardino de Campos. De início, quatro doutores trabalhavam no centro médico, provisoriamente instalado em uma casa na Rua General Flores, no bairro do Bom Retiro. Só em 30 de abril de 1916 o governo inaugurou a primeira sede do hospital, na Avenida Tiradentes. Quarenta e oito anos depois, em 1964, começou a construção do edifício de doze pavimentos que até hoje abriga o HPM. O prédio, com 430 leitos, fica na Invernada do Barro Branco.– área com mais de 1,2 milhão de metros quadrados, onde se localizam dez unidades militares, como a Academia do Barro Branco e o Presídio Romão Gomes. Próximo ao hospital estão o Centro de Assistência ao Idoso, espécie de asilo da polícia (veja quadro abaixo), uma clínica para atendimentos psiquiátricos e o Centro de Reabilitação, com fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, nutricionistas e outros profissionais. A área médica da PM paulista é coordenada pela Diretoria de Saúde, responsável por 56 postos espalhados pelo estado (vinte na cidade), duas policlínicas na capital e serviços odontológicos. No ano passado, o estado gastou 14 milhões de reais para manter o Hospital Militar.

No HPM trabalham 713 funcionários, sendo 160 médicos, que prestam concurso público para ingressar na Polícia Militar. Além de responder a um teste teórico, é preciso comprovar especialização e experiência prévia. Os aprovados fazem dois meses de aulas integrais na Academia do Barro Branco. Entram na corporação com a patente de segundo-tenente, ganhando cerca de 4 500 reais mensais. Podem chegar até o posto de coronel, com salário pouco superior a 10 000 reais. “É uma boa forma de ter estabilidade, com uma renda fixa”, afirma o coronel-médico José Queiroz, cirurgião e comandante da Diretoria de Saúde. Ao contrário do que ocorre com os policiais regulares, que são proibidos de fazer bico (mas fazem), os médicos da PM têm permissão para exercer a profissão fora do hospital. “Podemos trabalhar em clínicas particulares para ganhar um extra”, diz Queiroz, que tem um consultório próprio no Paraíso.

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Não são só os que tombam em combate que passam pelo hospital. Por dia, são atendidos ali entre 1 500 e 2 000 pacientes – número equivalente ao do Einstein. No ano passado, o corpo médico fez 1 600 cirurgias e deu 62 000 consultas. No pronto-socorro, foram 39 600 atendimentos. Os que se machucam em bicos ilegais – como os seguranças particulares – também são recebidos. Policiais feridos, mesmo que a ocorrência tenha sido fora do trabalho, são afastados após uma perícia médica e continuam a receber o soldo. Entre as cerca de quarenta especializações ambulatoriais, há ginecologia, cardiologia, dermatologia e oftalmologia. “Precisamos garantir respaldo ao policial que se arrisca nas ruas todos os dias”, diz o major Paulo Finocchiaro, chefe da divisão administrativa. Nem todas as áreas médicas são cobertas. Falta, por exemplo, estrutura para realizar partos. “Mas fizemos um convênio com a maternidade do Hospital Cruz Azul, no Cambuci, onde as mulheres da corporação podem ter seus filhos”, conta.

O ambiente do hospital não é luxuoso. Pacientes costumam dividir o quarto, equipado com uma TV pequena e duas camas, com outro policial. Mesmo assim, praças e oficiais sentem-se à vontade nas instalações, por estarem protegidos e entre colegas. “Uma de nossas funções é garantir a segurança dos feridos, que podem sofrer represálias de bandidos”, afirma o major Finocchiaro. A estrutura inclui uma clínica psiquiátrica, em uma casa separada do prédio principal. Quatro médicos e três psicólogos analisam pacientes depressivos, ansiosos, viciados, excessivamente violentos… No ano passado, prestaram 2 500 atendimentos. Todo PM que mata em serviço é obrigado a agendar consulta. “A profissão é extremamente estressante, com situações de risco, salário baixo e muita pressão”, avalia o major e psiquiatra Gilberto Curi, que trabalha desde os anos 80 na corporação. “Mesmo com toda essa tensão, é preciso manter a cabeça calma e centrada.” Para evitar problemas na rua, policiais sob análise são afastados do patrulhamento (normalmente, acabam em trabalhos administrativos), não podem andar armados nem, em alguns casos, fardados, até provar que estão aptos a voltar a exercer sua missão – combater criminosos e proteger a população.

Ele evitou um estupro

No dia 12 de julho, por volta das 6 da manhã, o soldado Ronaldo Dias salvou duas mulheres prestes a ser estupradas em Várzea Paulista, no interior do estado. Acompanhado de três policiais, invadiu uma construção para onde o criminoso havia levado suas vítimas. Dias, que estava à frente do grupo, foi recebido a tiros – cinco perfuraram suas pernas. Na foto, ele faz exercícios com o sargento e fisioterapeuta Washington Pires para voltar a andar. “Ao menos consegui evitar o crime e meus colegas pegaram o bandido”, afirma.

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Fisioterapia após um tiro na cabeça

O sargento Francisco Alves Pereira chora quando lembra o que ocorreu com ele no dia 27 de fevereiro do ano passado. Ao perseguir três homens suspeitos em São Mateus, na Zona Leste, foi surpreendido por um bando armado. Pelas costas, levou um tiro na cabeça. Mais de um ano depois, sofre com as sequelas: ele perdeu a sensibilidade do paladar e do olfato, tem lapsos de memória, dificuldade para andar e sua fala é pausada por pigarros. É tratado pelo cabo e fisioterapeuta Mauricio Tabajara.

Mentes feridas

Na clínica psiquiátrica gerenciada pelo major Gilberto Curi foram realizados 2 500 atendimentos em 2008. O soldado S.R.S., que sofre de depressão profunda, é um dos pacientes. Policiais sob análise são afastados do serviço de rua (normalmente, acabam em trabalhos administrativos), não podem andar armados nem, muitas vezes, fardados. “Durante algumas crises, chego a quebrar objetos e já pensei em suicídio”, conta o soldado.

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Acidente na Anhanguera

Durante um patrulhamento em Pirituba, na Zona Oeste, em 4 de abril, o subtenente Odair de Souza deparou com um carro parado no meio da Rodovia Anhanguera. A motorista tinha batido o veículo e, em desespero, não conseguia retirar o automóvel da estrada. Com a ajuda de quatro policiais, ele bloqueou o trânsito para evitar novos acidentes. Três motos esportivas, porém, não pararam. Desgovernadas, atropelaram três PMs: um morreu, outro quebrou o braço e Odair feriu a perna esquerda. Hoje, ele só caminha com a ajuda de um andador.

“Foi vingança”

O sargento Adauto Anselmo e sua mulher, Cristina Bortalace, também policial militar, foram atacados por três bandidos em um bar de Carapicuíba no dia 4 de julho. Alvejado três vezes (uma bala perfurou seu braço esquerdo e outras duas atingiram a testa), ele recupera o movimento do membro ferido, única sequela dos tiros. Sua mulher, baleada pelas costas, morreu. “Foi vingança”, afirma o sargento, na foto acima recebendo os cuidados da médica Miriam Macul. “Os três eram irmãos de um traficante que eu havia mandado para a cadeia um mês antes do tiroteio.”

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Relaxa, soldado

“Inspira, expira, inspira, expira…” Essas são as primeiras orientações da aula de ioga do subtenente Carlos Ricardo Fortino. A respiração serve para acalmar os trinta policiais militares que são seus alunos. “Submetidos a uma rotina estressante, em que colocam a vida em risco diariamente, os PMs precisam manter o corpo e a mente relaxados”, afirma Fortino. Há cinco meses, ele implantou a prática na Escola de Educação Física da Polícia Militar, no bairro do Canindé. Nas aulas, soldados com pinta de durões se contorcem e fazem as difíceis posições de meditação da técnica indiana. O subtenente conduz ainda outra atividade relaxante: o lian gong, uma mistura de ginástica com milenares princípios terapêuticos orientais.

A ioga aliviou a dor nas costas e o nervosismo do soldado Oscar Romani. “Com a cabeça calma, consigo atender melhor o público”, diz ele, que trabalha no 34º Batalhão de Policiamento Militar Metropolitano, responsável pela fiscalização de trânsito na cidade. “Perdi 10 quilos com a atividade.” Para a tenente Tamar Mitie Hasegawa, foi bom para aliviar um problema na coluna. “Eliminei as dores”, conta. “A ioga me dá uma sensação de paz.” Civis podem fazer a aula. Basta pagar uma matrícula de 30 reais e a mensalidade de 15 reais.

Para entrar em forma

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Em abril, o cabo Nilton Cardoso (em primeiro plano) pesava 99 quilos. “Tinha pressão alta e dores nos joelhos devido ao sobrepeso”, lembra. Inscreveu-se, então, em aulas de exercícios físicos no Centro de Reabilitação. Cardoso já perdeu 8 quilos. “A melhora se reflete diretamente no trabalho”, diz a soldada e professora de educação física Daise Marques, que conduz as atividades de um grupo de quinze gordinhos. “É essencial que o policial tenha preparo para correr, pular muros e imobilizar bandidos.”

A alegria de uma vida nova

No último dia 18, nasceu a filha da soldada Dayane Cristina Ferreira, Gabriela. O parto normal, feito por um médico da PM no Hospital Cruz Azul, no Cambuci, que tem convênio com a corporação, correu bem. Na foto, Dayane, com barriga de mais de 36 semanas de gestação, faz pré-natal com o tenente e ginecologista Daniel De Gaspari.

Um abrigo para os velhos PMs

Há cerca de dez anos, o sargento reformado Adão de Souza Tobias separou-se da mulher e se viu sozinho no mundo. Ele então ligou a antigos colegas da polícia para pedir ajuda. Indicaram-lhe o Centro de Assistência ao Idoso. Trata-se de uma casa de repouso para PMs que não têm para onde ir. Hoje, aos 74 anos, Tobias divide o espaço com sete praças (patentes que vão de soldado a subtenente). “Aqui, converso com meus companheiros”, diz. O abrigo, administrado pelo hospital da PM e vizinho ao centro médico, está instalado em uma casa de dois andares com dez quartos. Simples, os dormitórios têm duas camas e um armário. Cada um recebe até dois hóspedes. Há ainda uma sala com TV, outra com mesa de sinuca e um jardim com horta. Os residentes podem sair à vontade. Alguns até fazem bicos, principalmente como seguranças. É o caso do sargento Alberto Rocha, de 75 anos. “Trabalhar e se movimentar motiva”, afirma. “A maioria de nós se contenta em esperar pela morte.” Pela estada, os policiais pagam metade de seu salário-base. Eles têm direito a refeições, e uma faxineira limpa o sobrado todos os dias.

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