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Histórias de violência no trânsito

O serviço 190 da Polícia Militar registra vinte brigas por dia entre motoristas nas ruas de São Paulo. Exercitar a paciência e não reagir diante de fechadas, buzinadas e gestos ofensivos é a melhor maneira de evitar situações de violência

Por Filipe Vilicic, Giovana Romani e Maria Paola de Salvo
Atualizado em 6 dez 2016, 09h10 - Publicado em 18 set 2009, 20h26

Há pouco mais de sete meses, o publicitário Mariano Archangelo, de 26 anos, esbanjava saúde. Nas horas de folga, praticava surfe e futebol. Mantinha o corpo em forma e, bonitão, era do tipo que fazia sucesso com as garotas. Sua vida mudou completamente no último dia 19 de dezembro. Durante uma briga no trânsito, levou um tiro na testa. Naquela noite, Archangelo e três amigos haviam saído de um bar para buscar a namorada de um deles em uma festa. Ao passarem pela Radial Leste, a garota atirou um isqueiro pela janela. Poucos segundos depois, um motoqueiro encostou no carro, reclamando aos berros: “Ela jogou uma lata em mim!”. A moça teria pedido desculpa, mas mesmo assim o motoqueiro voltou a abordá-los na Rua dos Trilhos, na Mooca. “Fiquei nervoso, baixei o vidro e mandei ele ir embora”, lembra o professor Lourenço Ritli, que estava ao volante. O motoqueiro então desacelerou, sacou um revólver, disparou e fugiu. A bala atingiu Archangelo, que estava sentado no banco de trás. “Se pudesse voltar no tempo, teria telefonado para a polícia e evitado a discussão”, afirma Ritli.

Os poucos segundos de fúria do condutor da moto têm custado meses de recuperação a Archangelo. Para retirar o projétil que havia se alojado em seu crânio, estancar uma hemorragia e remover estilhaços de osso do cérebro, o publicitário passou por duas cirurgias. Ficou 47 dias internado. Quando saiu do hospital, não conseguia andar nem falar. Começou a conversar em fevereiro e só voltou a ficar de pé em março, após muitas sessões de fisioterapia. Deu seus primeiros passos apenas em abril. Tem as pernas e os braços rígidos e caminha com extrema dificuldade. Alterada, sua voz é entremeada de pausas. O tiro danificou ainda outras funções do cérebro. Ele sofre para se lembrar dos conhecidos, de quantas vezes por semana vai ao médico (de segunda a sexta) ou de uma notícia que acabou de ver na TV. “Quero voltar a ser normal”, diz, com o rosto apático e o olhar distante. “Sonho em surfar, trabalhar e sair com amigos de novo.” Apesar de as investigações policiais continuarem, o motoqueiro não foi identificado.

Conflitos por motivos banais são rotina no trânsito paulistano. O Centro de Operações da Polícia Militar (Copom), o 190, registra, em média, vinte ocorrências desse tipo por dia. No último dia 17, uma sexta-feira, VEJA SÃO PAULO acompanhou o trabalho dos atendentes, que recebem 35 000 ligações diárias – de trotes a denúncias de homicídio. Foram 29 chamadas relatando confusões entre motoristas. “As sextas são os dias em que elas mais ocorrem, porque os congestionamentos aumentam e o stress das pessoas, também”, afirma o tenente Cleodato Moisés, chefe do atendimento 190. “Resolvemos a maioria dos casos por telefone, sem enviar viatura.” Normalmente, os policiais orientam o condutor a anotar a placa do outro veículo e a deixar imediatamente o local. Com os dados registrados, pode-se localizar o proprietário do carro depois, se for necessário. Em algumas situações, no entanto, a presença da PM é imprescindível. Às 5 da madrugada do dia em que a reportagem acompanhou o trabalho do Copom, uma mulher ligou, da Avenida Itaquera, na Zona Leste. Ela dizia estar sendo agredida por um bêbado que havia se chocado contra seu Fiesta. “O cara bateu na minha cabeça”, gritava. Os policiais foram ao endereço, separaram a briga e levaram os envolvidos ao 103º DP, no bairro de José Bonifácio. Lá, o homem foi autuado por embriaguez.

No dia 30 de junho, o motorista Jair Olímpio de Almeida Júnior, de 22 anos, foi assassinado durante um desentendimento na Zona Leste. A bordo de uma picape Corsa e acompanhado de um amigo, ele reduziu a velocidade ao encontrar uma lombada eletrônica na Rua Cônego Antônio Manzi, em São Miguel Paulista. O condutor do Fiat Tipo vinho que estava logo atrás buzinou e tentou ultrapassá-lo. De acordo com as investigações da polícia, Júnior acelerou por duas vezes para não deixá-lo passar. Na terceira tentativa, o motorista do Tipo teria baixado a janela dianteira e disparado três tiros, um deles no tórax de Júnior, que morreu na hora. Protegido pela película escura em todos os vidros, inclusive no dianteiro, o assassino fugiu sem ser visto. “Ele não gostava que as pessoas o cortassem no trânsito, mas era um cara pacífico”, afirma o irmão de Júnior, o comerciante Vanderlei José da Silva. “Nada justifica essa barbárie.”

Uma pesquisa realizada pelo instituto Gallup em 23 países, há seis anos – o Brasil não foi incluído -, apontou que 66% dos americanos e 48% dos europeus já se envolveram em incidentes relacionados à direção agressiva. Os engarrafamentos são a fonte número 1 de irritação para 61% dos 1 500 motoristas de oito capitais brasileiras, incluindo a paulista, ouvidos em um levantamento de 2006 da Associação Brasileira de Monitoramento e Controle Eletrônico de Trânsito (Abramcet). Os que mais se incomodam são os que rodam em São Paulo. Razões não faltam. A frota circulante paulistana, com 3,5 milhões de veículos, ganhou, só no mês passado, 33 430 novos carros. A média de lentidão no pico da manhã saltou de 65 quilômetros em 1997 para 91 quilômetros onze anos depois. No Brasil, não existem estatísticas sobre agressões no trânsito nem punições específicas para elas.

Quem está irritado se envolve duas vezes mais em situações de risco e comete até o quádruplo de agressões ao volante, segundo um estudo do psicólogo americano Jerry Deffenbacher, da Universidade de Colorado. A fotógrafa Adriana Spacca se encaixa bem nesse perfil. É do tipo impaciente, daquelas que buzinam um segundo após o semáforo ficar verde. Arruma encrencas quase diariamente. Duas semanas atrás, bloqueou duas pistas da Praça Panamericana, em Pinheiros, para bater boca por cinco minutos com o condutor de uma Kombi que, segundo ela, dificultava sua passagem. “Não tenho noção do perigo”, admite. “Meu sangue sobe e eu fico cega.”

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Perder a compostura ao menos uma vez na vida é algo que pode acontecer com qualquer um. Mas, se os ataques de fúria se tornam recorrentes ou são desmedidos, deve-se ficar alerta. Os conhecidos pavios curtos correm o risco de sofrer da doença chamada transtorno explosivo inter-mitente. Desde o ano passado, o Ambu-latório dos Transtornos do Impulso do Hospital das Clínicas (HC) mantém um grupo para tratar apenas desse tipo de comportamento.?”A procura é tanta que não temos mais vagas”, afirma a psicóloga Maria Christina Lahr, coordenadora do serviço. O entregador de pizzas Rafael Militão é exemplo de quem perde a cabeça com frequência. Com o guidão de sua moto, já arrancou pelo menos três retrovisores de carros, de propósito. Arrebentou o vidro traseiro de um outro com uma pedrada. “Se eu estiver certo, persigo o motorista e vou até o fim para tirar satisfação”, afirma. As agressões físicas e verbais a alguns dos 1 900 marronzinhos servem como medida da fúria dos paulistanos. A Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) recebe, em média, oito registros mensais de insultos, ameaças, desobediência ou injúrias. Lesões corporais são menos comuns. Nos últimos quatro anos, 47 casos do tipo foram computados.

Ao volante, a pessoa se torna anônima e tem a sensação de que jamais vai cruzar novamente com quem brigou. Além de ser usada como armadura, a lataria impede o contato olho no olho, o que não raro dá margem a mal-entendidos. Autor do livro Por que Dirigimos Assim, o americano Tom Vanderbilt usa uma analogia para explicar esse comportamento. Estar no trânsito é como participar de uma sala de bate-papo on-line usando um pseudônimo, que, no tráfego, seria a placa dos carros. Em ambos os casos, as regras de convivência são deixadas de lado. O desenhista Daniel de Paula, por exemplo, ficou fora de si depois que o Citroën Berlingo do auxiliar administrativo Leandro Lima mudou de faixa sem dar seta, no dia 27 de março do ano passado, na Avenida Tiradentes. Segundo informações da PM e do boletim de ocorrência registrado no 2º DP, no Bom Retiro, De Paula xingou, gritou e colidiu duas vezes, de propósito, com o outro motorista. Saiu do carro disposto a acertar as contas no braço. “Mas, quando ele viu o tamanho do oponente, correu”, conta o capitão Emerson Massera, um dos quatro policiais que apartaram o conflito. De Paula não conseguiu fugir e levou socos e pontapés (veja a sequência de imagens ao lado, publicadas originalmente no jornal O Estado de S. Paulo). Nenhum dos dois foi indiciado pelo caso, já que, no boletim de ocorrência, ambos aparecem como vítimas. São, da mesma maneira, igualmente culpados. “Ninguém é inteiramente inocente quando o assunto é comportamento agressivo ao volante”, diz a pedagoga especialista em educação no trânsito Nereide Tolentino. “É difícil encontrar quem ignore as provocações e siga seu caminho.”

Se não tivesse reagido aos insultos da motorista de um Land Rover, a comerciante Graziela Martins teria evitado uma briga que começou na Marginal Pinheiros, há quatro anos, e foi parar nos tribunais. Depois de ser fechada, ela insultou a outra motorista. A troca de xingamentos seguiu por vários quilômetros até o Túnel Max Feffer, no Itaim Bibi, quando a condutora do Land Rover desceu do carro, partiu para cima do Fiesta de Graziela e começou a socar a cabeça da comerciante contra a coluna do cinto de segurança do veículo. “Terminei com um baita galo, um ombro roxo e vários fios de cabelo a menos”, conta. “Queria acertá-la, mas me controlei, o que me ajudou a ganhar o processo movido contra ela depois.”

Nem mesmo os responsáveis por zelar pela segurança pública estão imunes a surtos. No último dia 15, a guarda-civil Claudia Tavares da Silva não se segurou quando teve o retrovisor de seu Palio raspado pelo Chevrolet Classic do comerciante Luciano de Morais Pinho, na Avenida dos Bandeirantes. Depois de anotar a placa de Pinho, ela o perseguiu até a Avenida Brigadeiro Faria Lima. Da janela do veículo, apontou uma arma na direção dele, dizendo-se policial (o que, aliás, não é). “Fiquei com medo, parei num posto e resolvi chamar um bombeiro que passava por ali”, lembra o comerciante. Segundo o relato de testemunhas que consta no boletim de ocorrência, ela ainda teria jogado o carro contra o bombeiro por duas vezes para tentar escapar. Só foi contida depois que dois homens da PM chegaram e tiraram a chave do contato de seu automóvel. Como Claudia portava um revólver particular fora do horário de serviço e não tinha permissão para o uso, ela responderá a um inquérito policial por porte ilegal de arma. Também será investigada pelos crimes de ameaça, injúria, desacato e por ter afirmado ser policial. “Tive de gastar horas na delegacia e perdi um negócio de 60?000 reais”, diz Pinho. No trânsito, a raiva ao volante sempre traz prejuízos. Para evitá-los, o melhor é levar o desaforo para casa.

Como fugir de confusões

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Tente sair de casa sempre com alguma antecedência, contando com imprevistos pelo caminho

Evite guiar quando estiver nervoso ou após uma discussão. Concentre-se em dirigir e resolva os outros problemas depois

Deixe o celular de lado enquanto estiver ao volante. Além de ser uma infração, falar enquanto se está dirigindo distrai e pode causar acidentes que sempre são fonte de discussão

Em vez de amaldiçoar o congestionamento, encontre maneiras de torná-lo menos maçante. Músicas e audiobooks ajudam a desanuviar os pensamentos

Buzinar milhares de vezes não vai fazer o trânsito fluir. Não manifeste sua raiva ferindo os ouvidos alheios

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Pense em quantas vezes você já fechou alguém, se esqueceu de dar seta ou cometeu os erros que tanto o incomodam no tráfego

Respeite as leis de trânsito. Sinalizar ao mudar de faixa e evitar costurar são atitudes valiosas para não se envolver em brigas

Seja educado. Se pedirem passagem, dê. Não faça gestos obscenos nem diga palavrões. Evite dar luz alta na traseira dos carros

Não é preciso pegar os contatos do motorista que bateu em seu carro. Anote a placa do veículo e saia do local. Leve o número para uma base da Polícia Militar, que pode apontar o proprietário

Caso queira pegar o telefone do outro motorista, desobstrua a via e encoste o veículo em um local onde seja permitido estacionar

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E se a briga começou…

Não encare o opositor. O olho no olho é visto como um sinal de provocação mútua

Evite discussões e siga seu caminho, ainda que lhe pareça injusto

Jamais responda a agressões no trânsito. Caso alguém o ameace, ligue para a Polícia Militar ( 190). Um policial vai orientá-lo e uma viatura pode ser enviada ao local

Ao menor sinal de desentendimento, aumente a distância em relação ao outro carro

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Não freie nem faça manobras bruscas. Pode parecer uma afronta

Não caia em provocações. Tente entender que a outra pessoa também está com raiva

Peça desculpas, mesmo estando com a razão

Fontes: Maria Christina Lahr e Raquel Almqvist, psicólogas, e Polícia Militar do Estado de São Paulo

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