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Vigília insana

Por Ivan Angelo
Atualizado em 5 dez 2016, 19h45 - Publicado em 18 set 2009, 20h18

Um pequeno grupo de moças chegou no finalzinho da tarde e parou na porta do grande hotel. Logo outro, e outro, e mais um. O jeitão geral delas, as roupas, os cabelos, os sapatos indicavam pessoas que não tinham recursos para se vestir melhor, aprender gestos mais delicados, cuidar melhor dos cabelos e da pele. Talvez morassem longe, condução difícil.

O porteiro foi chamado ao saguão, recebeu instruções, voltou lá para fora e pediu ao grupo, que aumentava e se acrescentava de curiosos, o obséquio de não obstruir a entrada dos hóspedes.

– Ele já vai sair? – quis saber uma delas.

“Ele”. Os dois lados sabiam de quem se tratava. No hotel estavam hospedados alguns escritores conhecidos, convidados para uma feira de livros que se realizava na cidade; estava também um time de futebol de fora, que jogaria contra o campeão local naquela noite, quarta-feira. Não eram os escritores ou os artistas da bola que atraíam as meninas, algumas adolescentes. O porteiro assumia ares de importância. Respondeu à pergunta da garota como se encarnasse a própria administração do hotel:

– Não podemos informar.

– Diz a hora que ele vai sair, diz.

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– Não sabemos. A assessoria dele é que pode dizer.

– Chama ela, chama, por favor! – veio o pedido, com uma dose de charme.

– Ela já está sabendo de vocês. Vai atender quando puder. Está falando com a imprensa.

O grupo crescia. Duas senhoras, de jeito humilde, se incorporaram e explicaram para quem não perguntou: tinham vindo só para “ver ele de perto um pouquinho”. Empregadas domésticas e comerciárias que deixavam o serviço foram parando por ali. Dois rapazes, de calças jeans justas e de cintura baixa, barriguinha depilada, brincos, olhos sombreados, pareciam tão ansiosos quanto as moças. Perto, um grande ônibus e um carro de reportagem indicavam o porquê da aglomeração. O ônibus, pintado como um anúncio móvel do show, trazia em grandes letras de fantasia o nome do cantor do momento e, em letras menores, o da banda que o acompanhava.

Lá pelas 8 horas da noite, alguém da assessoria de imprensa desceu com fotos autografadas para distribuir – o que provocou tumulto e empurra-empurra – e pediu que fossem para casa porque “ele” não ia descer, estava cansado, só a banda ia ao ginásio para ensaiar e passar o som. Decepção, descrença, “ooohhh”, “é grupo”, “eu não saio”.

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A aglomeração atrapalhava a movimentação dos hóspedes. O grupo de escritores desceu, atravessou a massa indiferente de não-leitores e entrou na van que o levaria para a sua tribo de comedores dos biscoitos finos da literatura. Desceu o time de futebol e entrou no ônibus sem um “é campeão!”, sem um tímido “vamos ganhar!”. As fãs do cantor não podiam se distrair.

De repente elas se dividem em desespero e angústia, uma parte corre para dar a volta ao quarteirão: o boato era que “ele” sairia pela porta dos fundos. As que ficam sofrem sem saber se o estão perdendo, ameaçam ir, voltam. As que foram retornam desesperadas – o portão estava trancado! – procurando saber se “ele” saiu, e batem no peito aliviadas ao saber que não.

Horas depois, retornam os futebolistas, e os dois grupos se olham, com a derrota nas faces. A vigília insana se estende pela madrugada. A maioria desistiu, incluindo as senhoras, e restam umas vinte moças. A assessoria, penalizada, distribui uma segunda rodada de fotos autografadas, mas elas não se afastam. Os escritores regressam, cansados de citações mútuas, e se impressionam com aquela fidelidade que nunca teriam. Ao entrar, uma escritora ouve:

– Se ele te chamasse para subir, você ia? Ia? Ficava com ele?

Não percebe a resposta. Sobe, deita-se, não dorme. O mistério: o que as leva a essa espera insana? Que pretendem? Um beijo? Uma foto com ele? Um troféu? Passar a mão nele? Uma noite com ele? Que aquele anjo da canção as arrebate e as leve para longe do seu destino?

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