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Era uma vez no Rio Tietê

As memórias do jornalista responsável pela <em>Vejinha</em> por mais de vinte anos

Por Carlos Maranhão
Atualizado em 5 dez 2016, 12h03 - Publicado em 18 set 2015, 20h00

Eu me lembro que chovia muito, chovia sem parar. O Tietê transbordara. Era quinta-feira. Dia do fechamento, ou seja, nosso prazo final. A redação de VEJA SÃO PAULO ficava bem em frente ao rio, entre as pontes da Freguesia do Ó e do Piqueri. Tudo indicava que não haveria jeito de chegar ao nosso local de trabalho.

Mas chegamos, como sobreviventes de um dilúvio. Dirigindo pela contramão da Marginal ou a pé. A Vejinha tinha de ficar pronta no prazo. E ficou.

Estávamos em 1991, e eu começava minha longa trajetória na revista. Quando me dei conta, haviam se passado 23 anos. E eu continuava lá.

Eu me lembro que naquele prédio envidraçado de sete andares, exposto a enchentes, repetia-se o seguinte: não fazemos revista para os amigos, os anunciantes, o governo ou os acionistas da empresa; fazemos para os leitores.

Quem eram eles? Logo descobri: simplesmente todas as pessoas que eu conhecia liam a Vejinha. Nunca precisei perguntar “Viu nossa capa?”, “Leu aquela matéria?”. Com raras exceções, já tinham visto, já tinham lido. Embora houvesse milhares de outros leitores, com os quais eu logicamente jamais cruzaria, aquela pontinha de iceberg iria me servir de referência permanente.

Certo dia, um pediatra ligou e fez uma pergunta surpreendente: “Você tem ideia da força da sua revista?”. (O “sua” estava correto. Eu cuidava dela como se fosse minha.) Ele havia sido personagem de uma nota no Terraço Paulistano, com a informação de que pretendia dar palestras informais sobre aids a adolescentes. Não saíram no pequeno texto o telefone nem o endereço do consultório. Para encontrá-los e entrar em contato, seria preciso consultar algo que sumiria do mapa: a lista telefônica, numa tarefa chata e trabalhosa. Internet, e-mail, redes sociais, Google? Imagina… Pois bem. O médico queria contar que, ao longo daquela segunda- feira, 24 horas depois de a revista ter ido para as bancas e para os assinantes — ela começava a circular no domingo, não no sábado —, sua secretária havia anotado o nome de 250 pais e mães, que em sua maioria nem clientes eram e pediam a inscrição dos filhos nas tais palestras.

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Então era isso: os leitores podiam ser encontrados no mundo real, não se tratava de um discurso ou de uma abstração, e buscavam orientação na revista para se divertir, conhecer lugares novos, comprar, explorar a metrópole em que moravam, entendê-la melhor, examinar a solução de seus problemas, ler boas histórias, encontrar ajuda na tarefa de educar os filhos, melhorar de vida.

Eu me lembro que eles surgiam de todos os lados, famintos e sedentos, horas após o lançamento do especial “Comer& Beber”. Bares e restaurantes campeões ficavam com fila na porta. Em uma das primeiras dessas edições, a carne utilizada para o hambúrguer acabou no meio do domingo nas unidades do América, que havia sido eleito em primeiro lugar na sua categoria, tantos foram os pedidos. O América tinha preços razoáveis, ao alcance da média dos leitores, mas como explicar que o antigo Fasano da Rua Haddock Lobo, com seurequinte e seus pratos caros, recebesse um afluxo de comensais em seguida à premiação? Não era público dos Jardins ou do Morumbi, mas — os donos observaram — paulistanos da Zona Leste e da Zona Norte que também tinham dinheiro, nunca haviam entrado naquele ambiente majestoso e talvez estivessem apenas esperando um aval confiável para ir conhecê-lo.

Então era isso, mais uma vez: a revista havia conquistado os leitores com sua credibilidade, o ativo mais precioso que uma publicação pode ter. Difícil de alcançar, fácil de perder.

Eu me lembro que manter essa credibilidade era — não tenho dúvidas de que continua sendo — a preocupação número 1 da revista, o que ajuda a entender por que Vejinha é o que é, no impresso ou no digital.

Eu me lembro que, no empenho para publicar a informação precisa, uma moça de cabelos loiros encaracolados passava a semana inteira pendurada no telefone. Ligava para os estabelecimentos que entrariam no Roteiro, um a um, e indagava as mesmas coisas. Bom dia, seu Belarmino, vocês continuam não aceitando aquele cartão? Boa tarde, seu Mancini, a casa ainda abre às 11h30? Boa noite, seu Donato, a pizza Castelões mantém o preço? Às vezes ninguém atendia, e era um deus nos acuda: a casa poderia ter fechado as portas.

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Eu me lembro que esta era — nunca com certeza deixará de ser — uma questão de honra: em nenhuma hipótese a Vejinha poderia publicar a resenha de um lugar que encerrara suas atividades. Ou um telefone errado. Espalhou-se aliás que eu teria indagado a uma repórter recém-contratada, quando recebi seu primeiro texto, se os telefones citados no final da matéria — sobre lojas de CD, no tempo em que lojas de CD existiam aos montes — estavam devidamente checados. Sim, a repórter confirmou. Ainda bem, eu teria dito, segundo sua versão, pois aqui quem troca um número perde o emprego. Posso ter pensado, mas acredito que não falei. De qualquer modo, ela saiu alvoroçada da sala e, por prudência, foi correndo ligar para loja por loja. Felizmente, estava tudo certo. Mas a gente só sabe disso quando confere.

Eu me lembro que aprendi a admirar os bons repórteres que trabalharam ao meu lado. Foram inúmeros. Não mencionarei nomes, como não mencionei ninguém até aqui, para não cometer injustiças. Curiosos, fuçadores, inquietos, fofoqueiros, atrevidos, críticos, sensíveis, talentosos, aplicados, jovens em sua maioria e, cada um do seu jeito, apaixonados por São Paulo, foram e são a alma da Vejinha. Recordo em especial de um momento de superação coletiva. Em 2003, a prefeita Marta Suplicy iria casar. Poucos assuntos seriam tão relevantes na história da revista. Como, porém, escrever a respeito, se a noiva, por motivos políticos, se negava a falar conosco? Pior: com o poder que tinha, pediu que madrinhas, padrinhos, amigos e familiares não nos passassem nada. Em um trabalho de formiguinhas, as repórteres foram atrás de migalhas, um detalhe aqui, uma frase lá, uma inconfidência acolá, e no conjunto colheram um material tão rico que nos permitiu a publicação de um irresistível relato de oito páginas. E não é que, como os leitores, o casal adorou a reportagem?

Não me lembro mais de madrugadas em claro para trocar a reportagem de capa em cima da hora, de matérias que caíam porque não se confirmavam, de pressões vindas de vários lados, de gente reclamona, de prazos apertados, dos erros que não pudemos evitar.

Mas não vou esquecer que, mesmo com as águas sujas do Tietê quase nos afogando, a gente se orgulhava de entregar para o leitor na hora certa, semana a semana, a melhor Vejinha que conseguíamos fazer. Tem sido assim há trinta anos.

(Este texto foi inspirado no livro Memorando, de Geraldo Mayrink, saudoso editor de VEJA, e Fernando Moreira Salles, publicado pela editora Companhia das Letras em 1993. Um dos seus trechos: “Eu me lembro que aprendi que saudade é uma palavra exclusiva da língua portuguesa”.)

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Carlos Maranhão foi diretor de redação e diretor editorial de VEJA SÃO PAULO entre 1991 e 2014

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