Assim que marcou a data do lançamento do livro, o autor começou a se preocupar. Não andava bem de memória havia algum tempo. Para datas, conservava a antiga precisão, mas, para caras e nomes, juntar os nomes às caras, ou estas àqueles, ou pessoas a fatos, a memória falhava.
Vezes sem conta passara na rua pelo constrangimento de não se lembrar do nome de um ex-companheiro de trabalho, uma amiga, uma vizinha, um colega escritor. Tinha medo de cometer algum esquecimento imperdoável na noite de autógrafos. O pessoal da livraria tomava o cuidado de inserir na página dos autógrafos uma tira de papel com o nome de cada pessoa, mas algumas delas, confiantes, diziam que não precisava, que eram muito amigas, e, justamente na hora delas, pá!, o lapso; e havia quem retirava maliciosamente a tira de papel só para testar o escritor amigo.
Pois bem, ele não gostava daquele papelzinho, achava constrangedor recorrer a ele na frente da pessoa, toda vez que embatucava diante de um nome. Além do mais, o papelzinho ineficiente não esclarecia nomes de esposa, marido, filha, essas coisas de que ele deveria se lembrar. Sabia como era aquilo, já estivera em dificuldades com os tais papeizinhos.
No último lançamento, havia pedido ajuda à mulher, dona de memória visual e factual extraordinária. Sabia não só os nomes das pessoas, mas também os dos filhos e netos. O resultado foi meio ridículo, ele acha, embora tenha sido sua a ideia. Ela ficou de pé ao seu lado na mesa e se antecipava no cumprimento de cada pessoa conhecida, em voz alta, e nisso passava quase um currículo:
— Olá, Fernando, filho da dona Quinha, neto da dona Cocota! Oi, Camila, como está sua lindíssima filha, Helena, e o seu charmoso marido, Fábio? Boa noite, João de Freitas, nosso vizinho da Rua Bartira. Oh, que linda você está, Mariana, e que linda gravata, Thiago, e estes filhos lindinhos, João Pedro e Isabela, como vão?
O autor não queria passar por uma dessas situações de novo. O filho, ligado em novidades eletrônicas, sugeriu um avanço tecnológico no desempenho da mãe. Argumentou:
— A ideia foi boa. O mal de vocês foi usar tecnologia antiga. Já imaginou um agente da CIA passando dicas para um companheiro com essa técnica de vocês? Tanto aparelhinho aí para incrementar isso!
O garoto comprou os aparelhinhos em loja de espionagem, testaram, treinaram, funcionou. Na noite do lançamento, lá estava o autor todo confiante sentado à mesa diante da fila, com um aparelhinho sem fio quase invisível enfiado no ouvido, microfone no botão da camisa, e a mulher de memória incrível ficou meio encoberta na escada que levava ao mezanino, a alguns passos, com seu transmissor disfarçado no colar e fonezinho no ouvido, passando dicas.
— Salve, Mário! — ele cumprimentava, alegre. — Ótimo o seu ‘Pauliceia Di lacerada’, incorporando Mário de Andrade. Dois Mários pelo preço de um!
— Marçal, grande Marçal! — abria os braços. — Lorena vai bem? Acompanhei a ‘Força-Tarefa’ na televisão. Parabéns!
— Humberto Werneck e Paulinho! Caso raríssimo de transmissão de talento pelo DNA.
Se alguém contava um caso ali na beira da mesa, e na hora faltava a data ou havia alguma divergência em torno disso, ele, que nisso era bom, aparteava:
— 1957! Tenho certeza.
E assim foi. Não errava nomes, pessoas, obras, datas…
— Que memória! Ah, que inveja, meu amigo.
Ele, rubro de modéstia. Chegou uma peruaça linda e o atacou de beijinhos e ‘oi, meu amor’, achando que ele estava sem a esposa.
— Quem é essa?! — ele ouviu rugir no fone do ouvido.
Foi rápido e discreto:
— Uai, querida, se você não sabe, eu que vou saber?
Ela acabou dando risada. Uma perua a mais não ia estragar sua noite e seus dias.