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Contardo Calligaris fala sobre casamento, sexo e a série ‘Psi’

Com sete ex-mulheres no currículo, o protagonista do novo seriado da HBO é um profissional do divã culto, sedutor, bem de vida, irônico e aventureiro

Por Airton Seligman
Atualizado em 1 jun 2017, 17h23 - Publicado em 4 abr 2014, 23h00

Em uma esquina movimentada perto da Avenida Paulista, o motorista do jipão de luxo para mais uma vez no farol onde costuma admirar a moça que joga malabares de fogo. Lança seu charme e finalmente a leva para seu apartamento. Dias depois, esse sujeito de meia-idade, charmoso, bem de vida, psicanalista e professor cheio de tiradas polêmicas sobre a existência e a moral está na casinha simples da mesma artista de rua meio riponga, na Zona Leste. Transam, enquanto a filha autista dela dorme no quarto ao lado. Qualquer semelhança dessa cena do novo seriado Psi com a vida do psicanalista Contardo Calligaris, um dos mais badalados e preparados terapeutas da capital, não é mera coincidência. 

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Mais conhecido do grande público por discutir, com sólida erudição e pegada pop, temas como desejo, sofrimento, sociedade e cultura em uma coluna semanal na Folha de S.Paulo, Contardo, de 65 anos, é autor do roteiro e coprodutor do programa que estreou no mês passado no canal fechado HBO. O protagonista, Carlo Antonini, é a sua cara. Em todos os sentidos. Ele foi tirado dos dois romances do psicanalista publicados pela Companhia das Letras: O Conto do Amor (2008) e A Mulher de Vermelho e Branco (2011). No programa de TV, com treze capítulos na primeira temporada, o ator Emílio de Mello defende o papel principal. Sua semelhança física com o terapeuta é notável.

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Se Contardo já teve um romance com uma malabarista de farol? Sim. “Praticamente tudo nas aventuras do protagonista tem eco de experiências vividas, sejam elas aventuras de rua ou de clínica”, diz. “Escrevo pouquíssima ficção pura.” Ele atende seus pacientes em um consultório nos Jardins que em nada sugere ser o templo de um dos profissionais mais incensados da área. Não há secretária por lá. A recepcionista do prédio diz: “Suba, entre e aguarde”. A sala de espera é quase espartana. Para ler, somente catálogos de exposições, de seminários, livros de arte… Os móveis têm razoável tempo de uso. E nada de ar-condicionado, apenas ventilador de teto. No espaço para a consulta, um pouco mais de atenção: ambiente amplo, livros, móveis e luz confortáveis. O preço de uma sessão, de até 500 reais, não está entre os mais altos do mercado. Flávio Gikovate, outro nome estrelado da área, por exemplo, cobra mais que o dobro disso.

 

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A exemplo de Carlo Antonini, o protagonista aventureiro e sedutor de Psi, Contardo não é um cara, digamos, convencional. Ele fala um português quase perfeito, com modulação típica de um italiano. Filho milanês de um cardiologista e de uma tenista de mão-cheia, teve uma educação católica. Aos 15 anos, foi passar uma temporada em Londres para estudar inglês, apaixonou-se por uma canadense que vivia na cidade e decidiu não voltar mais para casa, rompendo com a família. Na época, um dos bicos que fazia para se sustentar era divulgar para turistas nas ruas as atrações de uma boate de strip-tease. Tempos depois, reconciliado com os pais, voltou à terra natal, onde chegou a trabalhar um período como fotógrafo. Mais tarde, saiu de lá para estudar em Genebra e em Paris com grandes mestres da linguística, da filosofia, da sociologia e da psicanálise como Jean Piaget, Roland Barthes e Jacques Lacan. Na metade dos anos 70, em meio a crises de angústia, foi parar no divã. Acabou se interessando tanto pela área que decidiu frequentar aulas para trocar o papel de paciente pelo de analista. Começou a atender em 1975 na capital francesa. A ligação com o Brasil teve início uma década depois, quando foi convidado a vir a Porto Alegre para uma série de conferências. Conheceu nas primeiras fileiras da plateia a mulher que se tornaria a sua segunda esposa e, em 1989, resolveu se mudar para cá. Em 1994, foi viver com ela nos Estados Unidos. Dez anos depois, fechou o consultório em Nova York e se fixou definitivamente em São Paulo. “Como você sabe, errar é humano, mas perseverar é diabólico”, diz, rindo, com um humor nonchalance embalado na voz grave.

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Colegas e pacientes apontam esse jeito irônico de dizer verdades como uma de suas maiores armas. O adjetivo “sedutor” é um dos mais repetidos quando se cita o nome do italiano para alguém que frequentou seu consultório ou participou de suas aulas e supervisões. “O cara é muito sedutor, e é difícil lidar com isso: você chega com carências e ele vem charmoso, acolhedor”, conta uma paciente. Ela fez análise durante cinco meses e só se deu conta de que havia criado uma ligação emocional com o analista quando, num blackout na cidade, subiu no escuro os dezoito andares até o consultório dele. Deixou a terapia logo em seguida. “Contardo dá aquele toque que vale tudo, promove um turning point em sua vida”, completa a mesma paciente, embora ainda engasgada com a prática do “tempo lógico lacaniano”. Grosso modo, esse cânone do método do psicanalista francês Jacques Lacan, de quem Contardo é discípulo, prevê sessões sem tempo cronológico estabelecido previamente (pode ser meia hora, podem ser cinco minutos). O profissional encerra a intervenção do dia quando percebe que o analisando teve seu inconsciente aflorado e o resultado dessa revelação contribui para o direcionamento da terapia.

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A série Psi mostra outras facetas do terapeuta, hoje um “anarquista bem-comportado”, como se define o ex-comunista de carteirinha do PC italiano. Seu negócio é sacudir certezas — no consultório, nos romances, no jornal —, embora o divã pareça ser a plataforma que menos o comova ultimamente. Segundo seus pacientes, como é praxe na profissão, ele mais escuta do que fala. Nas crônicas, debates ou num papo com amigos, solta mais o verbo — quase sempre no ataque, com argumentação afiada, cheia de citações da alta cultura, feitas de forma que pareçam banais. O italiano pertence a uma geração libertária, hábil em unir comportamento e consciência na hora de romper barreiras. Nesse aspecto, ele vê um retrocesso em relação aos jovens de hoje. “As concessões ao prazer que a gente se dá hoje são mínimas”, entende. “Há uma geração careta. Estamos lá, correndo na esteira, renunciando a um camembert porque tem 60% de gordura… Só vejo jovens pensando no melhor emprego, na melhor aposentadoria”, conclui, terminando o raciocínio com um palavrão.

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Capa - Contardo Calligaris 3
Capa – Contardo Calligaris 3 ()

Carlo Antonini, em Psi, tem esse tom meio inconformista. E, a exemplo de Contardo, parece um pouco cansado da profissão. É um sujeito recém-separado (o caso com a malabarista acontece quatro dias depois do desenlace) e vive uma relação complexa com sua colega de consultório (Claudia Ohana). Os dois se conheceram quando ele a procurou como prostituta. Ah, ela foi aluna dele, até se formar psicanalista. Mais uma vez, a ficção imita a realidade. Na juventude, Contardo revela ter tido um longo romance com uma prostituta de Milão. “Fui muito feliz com ela”, recorda. Já atuando como terapeuta, teve muitas pacientes que trabalhavam como garotas de programa. Algumas também se tornaram psicanalistas, para quem ele encaminha pacientes. Não vê nenhum problema na profissão mais antiga do mundo. “Defendo a liberdade de cada um dispor do próprio corpo e não acho que usufruir isso seja muito diferente de comprar o trabalho de alguém”, diz. “Mas não sou um bom cliente do negócio porque não é uma fantasia sexual minha.”

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Seu barato é mergulhar na alma feminina, diz. E cita uma frase ouvida de Lacan, seu mestre em Paris, com quem aprendeu a ler Freud: “É preciso pegar as mulheres uma a uma”. Contardo leva mesmo a sério o ensinamento. Está há quase quatro anos com a atriz Mônica Torres. Eles vivem entre São Paulo e Rio de Janeiro (aqui na capital, o terapeuta mora em um apartamento de 200 metros quadrados nos Jardins, nas redondezas de seu consultório). É seu oitavo casamento — o primeiro foi aos 18 anos, com uma atriz americana. Tem apenas um filho, o francês Max, de 32 anos (ele é cineasta e reside em São Paulo). Com base na sua vastíssima experiência no assunto, Contardo afirma que ainda continua acreditando no casamento. “Nunca fui capaz de ter uma amante, mais de uma mulher ao mesmo tempo, acho muito chato e complicado”, jura. Isso não o impede de ter uma visão bastante pragmática dos relacionamentos. “O grande problema é que as pessoas não conseguem se separar. Elas já estão separadas e levam sete, oito anos para se separar de verdade. Aquilo é um sofrimento horroroso para todos. Quando paro de me reinventar no casamento, caio fora. Eu mesmo levei muito mais tempo do que deveria para fazer isso em algumas ocasiões. Acho que a gente deveria poder se separar por WhatsApp: ‘Valeu, acabou, a mala está na porta’.”

A ideia de ampliar os limites de sua atuação (psicanálise, ficção, jornalismo, televisão etc.) vem de uma busca por uma vida mais intensa. “Ele é um sujeito que faz o que quer”, define um psicanalista gaúcho, formado por Contardo quando o italiano passou por Porto Alegre. Mesmo que isso macule sua imagem de estudioso. Alguns pares o veem como um sujeito preocupado demais em aparecer, classificando-o hoje mais como cronista social ou comentarista cultural. O próprio psicanalista admite que essa diversificação pode ter esse tipo de efeito colateral. Mas afirma não estar preocupado. “O que me importa é ter uma vida interessante. Sou um cara que vai bater as botas, como a grande maioria. Quero ter uma vida o mais intensa possível. Escrever romances, por exemplo, era um sonho desde os 9 anos.” Uma colega diz que isso é admirável num profissional da área: “É legal nele essa fome de estar no mundo. O cara é um road-analista”. Mas sua admiração guarda reservas. Ao fazer supervisão com Contardo, a quem admirava pela atitude iconoclasta, saiu desconcertada. “Não senti que estava sendo escutada com o devido interesse. Ele não estava ligando muito. Ficava entre um certo despojamento e a displicência.”

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Outros são mais festivos ao celebrar o contato com o psicoterapeuta. Mesmo em condições de tratamento complicadas. Paciente do doutor Contardo durante sete anos, um paulistano lembra quanto o terapeuta o ajudava a “tirar o peso da vida”. “Ele descomplica, ‘despatologiza’. E olha que conseguir vaga era um sufoco. O consultório parecia um terreiro de macumba, tamanha a quantidade de gente esperando.” Essa mesma pessoa também se surpreendeu com outros dois aspectos do tratamento: a flexibilidade em relação ao valor da consulta (“Eu não podia pagar, e ele aceitou o que eu tinha”) e o estilo profissional (“Às vezes, sem mais nem menos, ele se levanta e vai andando para a porta no meio de uma fala, indicando o fim da sessão”). Sim, Contardo tem um código próprio de convívio, às vezes convencional, outras nem tanto. E diz ter poucas culpas. “A psicanálise me permitiu ter uma série de sentimentos considerados pouco nobres, como ódio, desejo de vingança…”, conta ele. “Eu me sinto muito bem odiando alguém. Só não mato porque é proibido.”

Capa - Contardo Calligaris 4
Capa – Contardo Calligaris 4 ()

Amigos e críticos adoram atribuir ao terapeuta-escritor o adjetivo vaidoso. “É impossível ser um sujeito contemporâneo sem ter um certo nível de preocupação com o olhar dos outros, porque é isso que nos define na modernidade, nos últimos 200 anos”, afirma, numa autoanálise. A produção cultural é uma das suas fontes de orgulho — além dos dois romances, soma uma dezena de livros sobre psicanálise e coletâneas de artigos. Parece pegar mais leve com a própria aparência. “Minha única vaidade talvez seja um respeito pela forma física e pela força. Sempre quis poder tirar a camisa sem vergonha, provavelmente porque, até os 10 ou 11 anos, eu sentia isso mesmo.” Para manter o corpo em forma, chegou a treinar boxe para valer, esporte que lhe rendeu uma bolsa e um título de campeão universitário quando estudou na Suíça. Parou de competir aos 22 anos, mas continua praticando a modalidade. Veste-se num estilo entre o clássico e o casual e anda sempre com uma ou duas canetas no bolso da camisa.

Por comodidade, frequenta há 25 anos o mesmo restaurante no dia a dia, o Tatini, nos Jardins. Ao falar, usa de forma recorrente advérbios de modo e superlativos. Não é ativo em redes sociais — perfis com seu nome no Facebook são falsos e ele próprio usa um avatar, apenas para dar uma espiadinha na fauna da rede. A respeito da chegada da velhice e das inevitáveis questões sobre a finitude que isso suscita, ele joga para a torcida. “Tenho uma intimidade legal com a morte”, conta, referindo-se ao grave problema de saúde que sofreu há quinze anos, quando recebeu a notícia de que tinha um tumor. “Me deram seis meses de vida. Diagnosticaram um câncer de pulmão, eu havia sido fumante. Não tinha a doença, mas cheguei a fazer uma cirurgia torácica. Estava convencido de que iria morrer.” Na verdade, como bem sabe o doutor Contardo, ninguém tem uma intimidade legal com a morte. Nessas horas, alguns se apoiam em Deus. Outros, num psicanalista.

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Cidadão do mundo

Contardo nasceu na Itália e viveu em outros cinco países. As recordações de suas andanças, comentadas por ele próprio:

Capa - Contardo Calligaris 5
Capa – Contardo Calligaris 5 ()
Capa - Contardo Calligaris 6
Capa – Contardo Calligaris 6 ()
Capa - Contardo Calligaris 7
Capa – Contardo Calligaris 7 ()
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Capa - Contardo Calligaris 8
Capa – Contardo Calligaris 8 ()

Contardo, em detalhes

› Peso: 70 quilos.

› Altura: 1,77 metro.

› Natural de: Milão, Itália.

› Formação acadêmica: doutor em psicopatologia clínica pela Université Aix-Marseille, na França.

› Sessão: preço variável, até 500 reais.

› Audiência: um dos colunistas mais lembrados pelos leitores da Folha de S.Paulo. Seus livros com maior apelo de público bateram a marca de 30 000 exemplares vendidos.

› Jornada de trabalho: “O que é trabalho?”, pergunta Contardo. Se incluir leitura, assistir a filmes e seriados, ler jornal, pensar, ele diz que chega a dezoito horas. “Mesmo assim, excluiria o sono, que talvez seja um grande momento de trabalho.”

› Estado civil: teve oito casamentos. O atual é com a atriz Mônica Torres. Estão juntos há quase quatro anos. “Vivemos entre Rio e São Paulo.”

› Filhos: o francês Max, de 32 anos, que mora em São Paulo.

› Netos: “Pois é… Nada.”

› Problemas de saúde: “Nada notável, salvo o envelhecimento, claro.”

› Apartamento: 200 metros quadrados, nos Jardins, perto de seu consultório, onde vive sozinho, exceto quando Mônica vem a São Paulo.

› Restaurantes prediletos: Tatini (seu dia a dia há 25 anos) e Maní (“Prazer, prazer e prazer.”).

› Hobbies: “Já se foram”, diz. Eram a bibliofilia (desfez-se de tudo ao sair dos Estados Unidos) e cavalos de salto (vendeu os dois na mesma época).

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